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Obrigada por tudo, Steve Silberman.
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Quando comecei este site, a minha intenção era sempre falar de cultura, para que isto aqui nunca virasse um blog sobre a minha vida pessoal. Nada contra blogs, fui blogueira por muitos anos, mas a minha intenção era ser vista como uma crítica profissional. É claro que, muitas vezes, cinema e realidade se misturam, mas sempre tentei aproveitar a deixa de algum filme ou de algum acontecimento no mundo das artes para falar dos temas que mais me afligem.

Pois bem, estou abrindo uma exceção. Ontem morreu o Steve Silberman, autor de “Neurotribos”, que eu já mencionei aqui. Venho indicando o livro dele há meses para todo mundo que eu conheço. É um apanhado histórico do autismo, de como ele era tratado, quando recebeu esse nome e quais são os desafios que os autistas enfrentam em uma sociedade que não é receptiva a eles. Ou a nós.

No ano passado, uma neuropsicóloga me aplicou alguns testes e levantou a forte possibilidade de TEA – ou Transtorno do Espectro Autista, nível 1 de suporte. Fez todo o sentido porque tomo antidepressivos e ansiolíticos desde a adolescência e, no entanto, os remédios não parecem muito efetivos (ao ponto de, anos atrás, um psiquiatra ficar visivelmente frustrado com a minha falta de melhora, como se a culpa fosse minha).

Sempre fui considerada muito sensível, difícil, chata, grossa, exigente, reservada, metódica, tímida, isolada e tantos outros adjetivos atribuídos às mulheres autistas. Mulheres, aliás, enfrentam uma dificuldade ainda maior na busca pelo diagnóstico. Porque todas as pesquisas eram realizadas com meninos e, assim, todos os parâmetros são masculinos. E, sim, há diferenças.

A busca por um laudo oficial foi um sofrimento. Passei por uma outra profissional que, ao longo de meses, invalidou todas as minhas queixas e atribuiu tudo à ansiedade social. Instintivamente, tudo o que ela me dizia não fazia sentido (ela disse, por exemplo, que autistas só poderiam ter deficiência intelectual ou altas habilidades, o que não é verdade). Então, desisti do laudo.

Fui cuidar de mim mesma, que era o que eu já estava acostumada a fazer. Comecei a ler a respeito e a escrita de Silberman me caiu muito bem. Como jornalista, ele vai direto ao ponto, mas de uma forma muito delicada, sempre embasado por uma extensa pesquisa. E me vi, de repente, num processo de recuperação do gaslight que aquela profissional fez comigo.

Eu sou neurodivergente. Digo neurodivergente, em vez de autista, porque há uma enorme correlação entre TEA, TDAH e AHSD. A ideia de espectro é relativamente nova, ainda há muito a se descobrir e as nomenclaturas vão mudando. Se autismo e Síndrome de Asperger (uma expressão em desuso) antes eram vistas como coisas separadas, talvez juntem TEA, TDAH e AHSD também. Quem sabe? É como preferir “queer”, em vez de “gay”, “lésbica” ou “bissexual”.

O que me basta é saber que há outras pessoas como eu, que lidam com a mesma frustração que eu sinto. E que lutar para parecer neurotípica (ou, como eu venho dizendo desde os 13 anos, “normal”) é justamente o que me causa depressão e ansiedade. “Neurotribos” foi fundamental nessa minha redescoberta.

Na tentativa de agradecer o que Silberman fez por mim e por tantos outros, pensei em traduzir alguns trechos desta entrevista. Dividi em subtítulos para facilitar a leitura. Espero que ajude mais alguém:

 

Institucionalização

“A institucionalização era o ‘tratamento’ padrão por boa parte do século 20. A teoria era de que o autismo era causado por uma falta de afeto dos pais, então os médicos tinham de remover a criança desse ambiente supostamente tóxico. Falei com alguns pais que, nos anos 50 e 60, eram aconselhados a internar o filho ou filha autista e seguirem com as suas vidas[…]

Estas crianças autistas eram frequentemente submetidas ao isolamento, à imobilização e às punições físicas por profissionais que não entendiam a condição. Lauretta Bender, diretora do departamento de psiquiatria infantil do Hospital Bellevue, na cidade de Nova York, administrava sessões de eletrochoque aos pacientes com autismo e também terapia de choque insuliníco – overdoses de insulina para induzir um coma temporário. Ela receitou antipsicóticos como Torazina e também tentou dar LSD às crianças.”

 

A “raridade” do autismo

“Em 1943, Leo Kanner, um dos primeiros psicólogos infantis dos Estados Unidos, apresentou o autismo como uma desordem rara que ele havia descoberto[…]Outros médicos escreveram a ele para dizer que o que ele estava descrevendo era conhecido como esquizofrenia infantil, algo que já era sabido há anos.

Para defender a sua descoberta, Kanner limitou a sua definição de autismo. Na verdade, ele limitou tanto que deixou de fora muitas pessoas que hoje teriam recebido o diagnóstico. Por exemplo, ele determinou que se o paciente tivesse convulsões, não poderia ser autismo; hoje sabemos que isto é uma característica comum do transtorno[…]

Mesmo que muitos pacientes em seu hospital não fossem brancos, ele só escrevia sobre meninos brancos de classe média ou alta como autistas. Ele insistia que o autismo era raro, mas raro mesmo era ter acesso ao consultório de Leo Kanner[…]É por isto que vemos um aumento de diagnósticos a partir dos anos 90 – porque, antes disso, o critério rígido de Kanner tornava o transtorno raro.”

 

Diferenças entre meninos e meninas

“Foi convencionado que o autismo é quatro vezes mais comum em meninos do que em meninas. Uma razão disto é que os meninos autistas podem demonstrar um comportamento agressivo, o que chama mais atenção dos pais, pediatras, professores e outras autoridades, levando ao diagnóstico. Eles podem ser expulsos da escola por comportamento violento, por exemplo.

Meninas estão menos propensas ao diagnóstico porque elas são ensinadas a serem ‘boazinhas’. De forma geral, meninos são recompensados por agirem como pequenos Donald Trumps. Um artigo recente no site Spectrum disse que mulheres autistas são especialistas em fingir que não têm autismo. Deveríamos nos preocupar mais com meninas que são quietas, reservadas, intensamente interessadas em seus hobbies, e com dificuldade de florescer socialmente.

No Psychology Today, no ano passado, uma das maiores autoridades em autismo, Kevin Pelphrey, do Yale Child Study Center, fez uma confissão chocante. Este homem, que passa os dias diagnosticando crianças com autismo, não percebeu os sintomas da própria filha até ela completar cinco anos. Ele procurava um comportamento masculino.”

 

Subdiagnosticação em minorias

“As pessoas sempre me questionam se não há um excesso de diagnóstico de autismo, se não estamos apenas colando um rótulo em crianças ‘geek’ que, gerações passadas, seriam consideradas meramente excêntricas. Respondo que eu acredito que o autismo ainda é subdiagnosticado em dois grupos: mulheres e pessoas não-brancas.

Os preconceitos culturais e de classe são tão arraigados ao processo diagnóstico que, nos anos 80, o psicólogo Victor Sanua alegou que o autismo era raro em famílias não-brancas. A realidade é que as famílias não-brancas muitas vezes não têm um acesso decente à saúde.”

 

Hans Asperger

“O pediatra Hans Asperger já estudava o autismo muito antes de Kanner, na década de 30. Sua clínica na Universidade de Viena era uma instituição surpreendentemente humana e compassiva[…]Em vez de comparar as crianças com uma definição estreita e artificial de normalidade, Asperger tentava descobrir o que cada uma precisava para florescer.

Ele acreditava que o autismo é comum, dizendo que uma vez que você aprende a reconhecer as características, você começa a vê-lo em todos os cantos. De forma presciente, ele enxergava a condição como o que hoje chamamos de ‘espectro’. Ele reconhecia que o autismo abarcava tanto as crianças que mais necessitavam de suporte quanto aquelas que tinham o potencial de se tornarem intelectuais.

Um de seus pacientes começou a desenhar triângulos e círculos na areia quando ele tinha dois anos e, em vez de fazê-lo parar, sua mãe encorajou o seu interesse em geometria[…]O mesmo garoto, quando entrou na universidade, encontrou um erro em uma das equações de Isaac Newton.

Asperger disse que o seu sucesso não aconteceu porque o paciente foi ‘curado’. Ele ainda era ‘obviamente autista’. Mas Asperger sabia que autistas podiam fazer coisas maravilhosas se contassem com o suporte devido e não fossem forçados a agir como pessoas neurotípicas.”

 

Eugenia

“As descobertas de Asperger foram esquecidas porque a sua clínica ficava na Áustria e, em 1938, a Alemanha invadiu o país. Antes do Holocausto, os nazistas lançaram um programa secreto de exterminação, depois chamado de Aktion T4, que buscava erradicar crianças com autismo, esquizofrenia, palato fendido, paralisia cerebral, Síndrome de Down etc..

Eles converteram toda a estrutura médica da Alemanha e da Áustria em uma indústria de morte. Médicos eram obrigados a relatar quais pacientes tinham deficiências hereditárias – pacientes que, então, eram levados para enfermarias especiais, recebiam injeções letais, morriam de inanição ou eram deixados do lado de fora durante o inverno.

Os pais, depois, recebiam um aviso informando que a criança havia morrido de ‘pneumonia’ – junto com a conta do enterro.”

 

Segunda Guerra Mundial

“Um dos maiores mitos na comunidade autista é que Asperger só tratava crianças de ‘alto funcionamento’. Isto aconteceu porque, em 1938, quando fez a sua primeira palestra pública aos nazistas, ele mencionou apenas os seus ‘casos mais promissores’. Ele queria dar ênfase às características positivas de seus pacientes, para salvá-los do projeto de eugenia.

Ele sugeriu que, por conta da habilidade superior em reconhecimento de padrões, alguns autistas poderiam se tornar bons decifradores de código. Os nazistas não aceitaram a sugestão e mataram os pacientes de Asperger. Durante a Segunda Guerra, ele foi motorista de ambulância e sua clínica foi destruída durante um bombardeio.

Enquanto isso, uma das maiores armas dos Aliados foi o trabalho de criptografia e decriptografia realizado na Inglaterra, liderado pelo brilhante cientista da computação Alan Turing. Tenho uma certa resistência a ‘retro-diagnósticos’, mas muitos dizem que Turing possuía características autistas.”

 

Síndrome de Asperger

“Foi só em 1971 que uma psiquiatra inglesa chamada Lorna Wing encontrou uma breve referência a Asperger no Journal of Autism and Childhood Schizophrenia. Seu marido, que falava alemão, traduziu o artigo original de Asperger para o inglês, e Wing redescobriu uma definição muito mais ampla de autismo do que aquela antes estabelecida por Kanner.

Foi ela que introduziu o diagnóstico de ‘Síndrome de Asperger’, porque ela sabia que os pais aceitariam mais prontamente um transtorno que não envolvesse a palavra ‘autismo’, ainda muito estigmatizado e atribuído à ‘falta de afeto’ dos pais.”

 

Medicalização da excentricidade

“Desde o início, Wing apontou um problema na Síndrome de Asperger: não é fácil diferenciá-la de uma mera excentricidade. Se passarmos do ponto na medicalização da excentricidade, corremos o risco de banalizar as dificuldades que os autistas e as suas famílias enfrentam diariamente.

Nos últimos vinte anos, mais ou menos, muitos passaram a diagnosticar celebridades com Síndrome de Asperger, como Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook, ou o comediante Jerry Seinfeld.

Bill Gates, o fundador da Microsoft, tem características autistas, mas ele claramente está se saindo muito bem, assim como Seinfeld. Se concluirmos que aquilo é o que autismo é, vamos subestimar a quantidade de suporte que os autistas e as suas famílias demandam.”

 

Perfis desiguais de cognição

“Muitos cometem o engano de achar que as habilidades extraordinárias estão relacionadas com as formas mais leves de autismo, mas alguns dos ‘savants’ mais impressionantes possuem enormes deficiências[…]Mesmo que muitos autistas possuam habilidades em áreas incomuns, eles também têm os que os especialistas chamam de ‘perfis desiguais de cognição’.

Eles podem, por exemplo, se destacar em matemática, mas não conseguirem amarrar os cadarços. Podem decorar os nomes de todas as ruas de sua cidade, mas não reconhecer o rosto da própria tia quando ela aparece para uma visita.”

 

Pesquisa genética

“Sou a favor da pesquisa genética. Talvez possa ajudar a desenvolver um medicamento para epilepsia, que é a principal causa de morte em autistas. Mas gastar mais US$50 milhões em mapeamento de genoma de famílias com crianças autistas não é tomar conta dos autistas de aqui e agora[…]

A maior parte do investimento vai para a busca do gene do autismo ou dos chamados ‘gatilhos ambientais’ que podem ativar uma predisposição genética[…]Não acho errado investigar essas correlações. O que estou dizendo é que é errado fazer isso enquanto as famílias têm de se virar sem um suporte adequado.

Programas de transição para ajudar adolescentes autistas a encontrar emprego depois que deixam a escola são praticamente inexistentes. Como sociedade, agimos como se determinar a causa do autismo fosse mais importante do que ajudar os autistas[…]

Pais que lidam com o comportamento difícil de uma criança e a quantidade limitada de recursos culpam o autismo, em vez da sociedade, por dificultar as suas vidas. É como se uma pessoa perseguida por ser gay culpasse a própria homossexualidade pelos seus problemas, em vez da cultura homofóbica.

É por isso que muitas das primeiras intervenções para o autismo se concentravam, inicialmente, em suprimir comportamentos que fizessem com que as crianças autistas fossem estigmatizadas por serem ‘estranhas’. Mas o valor dessas intervenções ainda é bastante debatido na comunidade autista.”

 

Intervenções

“Uma das primeiras intervenções mais comumente aplicadas é a ABA, ou Applied Behavioral Analysis (em português, Análise de Comportamento Aplicada), que foi inventada por um psicólogo da UCLA chamado Ivar Lovaas, nos anos 60. Basicamente, a ABA usa métodos de adestramento de animais para treinar crianças autistas.

Em vez de eliminar o estigma em torno do comportamento da criança, Lovaas se dedicou a eliminar o comportamento. Seu objetivo era fazer com que as crianças autistas parassem de balançar as mãos ou de fazer barulho, porque ele queria mantê-las fora das instituições. E isso não é um objetivo ruim, mas a forma com que ele tentou alcançar isso foi por meio de choques elétricos e terapia de aversão.

Ele argumentava que pacientes autistas não deveriam ser submetidos às considerações éticas convencionais com relação às formas brutais de punição e sugeria que as famílias usassem um aguilhão de gado para punir as crianças quando fizessem algo errado[…]Ele não achava que os autistas pudessem sobreviver como eles mesmos no dia a dia. Lovaas fez o mesmo com crianças gays, aliás: um sistema de punição e recompensa para treiná-las a não parecerem gays.

Desde então, a ABA mudou e continua muito popular. Mas muitos médicos e terapeutas a apresentam como se fosse a única esperança. Dizem aos pais que, se não começarem a ABA logo cedo, a criança perderá uma janela crucial de oportunidade. E é bem caro.

Há outras formas mais baratas de intervenção – e mais humanas – mas os aplicadores de ABA ganham tanto dinheiro que a indústria acabou se tornando muito influente. Surgiu uma espécie de seita profissional que tenta marginalizar qualquer outra abordagem.

A geração de crianças autistas que passaram pela intervenção como ela foi concebida originalmente por Lovaas agora são adultas e falam sobre as suas experiências. Muitos foram traumatizados. Alguns autistas que passaram por programas rígidos de treinamento comportamental quando crianças agora enfrentam estresse pós-traumático[…]

Hoje, alguns terapeutas de ABA buscam aumentar a autonomia do autista e o tratam com respeito. Outros, nem tanto. Alguns usam reforço positivo e recompensas. Outros ainda usam a punição.”

 

Uma abordagem mais humana

“Barry M. Prizant, autor do livro Uniquely Human: A Different Way of Seeing Autism, realiza um tipo diferente de intervenção chamado SCERTS, que significa Social Communication, Emocional Regulation, and Transactional Support (em português, Comunicação Social, Regulação Emocional e Suportes Transacionais).

Considero esta abordagem mais humana do que a ABA. Se uma criança está tendo um ‘meltdown’, em vez de perguntar ‘o que podemos fazer para eliminar este comportamento?’, Prizant propõe ‘o que neste ambiente está sobrecarregando a criança?’ Talvez, o ‘meltdown’ seja uma resposta razoável à quantidade exorbitante de estímulos que ela está recebendo naquele momento.

A intervenção de Prizant coloca a experiência do autista no centro, em vez de vê-lo como uma inconveniência ou um incômodo.

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