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Já nos cinemas, “Acerto Final” vem sendo divulgado como o último da saga “Missão Impossível”. Aos 62 anos, Tom Cruise é o último da espécie.
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Sei que Tom Cruise é uma pessoa horrível. Vi todos os documentários e programas sobre cientologia. Não há qualquer elogio ao seu trabalho que atenue a sua responsabilidade na divulgação da seita criminosa. Neste caso único, porém, ele nos compele a fazer aquilo – separar o artista da obra.

Como disse, Cruise é um monstro. Um maníaco. Mas é também o único disposto a perder a vida para nos entreter. Nem tanto por valorizar a nossa diversão, como ele diz, mas pela glória narcísica de fazer história em Hollywood como aquele que levou o seu comprometimento até as últimas consequências.

Imagino, inclusive, Cruise uns 15% decepcionado – lá nas profundezas obscuras de seu subconsciente jamais desbravado por psiquiatras – ao completar com sucesso alguma acrobacia perigosa da franquia “Missão Impossível”. O grand finale não foi desta vez. Narciso não fez o que tinha de fazer, isto é, se afogar no próprio reflexo.

Temos, portanto, dois fatos incontestáveis e não tão contraditórios assim. Seu enorme envolvimento com a cientologia é abominável; vê-lo dependurado num avião teco teco, com a força do vento achatando a pele das bochechas preenchidas com o mais caro ácido hialurônico, é mesmerizante.

Cruise tem 62 anos e não possui herdeiros. Quem são os heróis de ação mais ou menos na ativa? Keanu Reeves, com 60. Jason Statham, 57. Liam Neeson, 72. E são todos do subgênero da porradaria pura, ou seja, são os dublês anônimos, com os seus espasmos minuciosamente calculados, que convencem o espectador de que a terceira idade bate forte.

Em 2025, Cruise ainda carrega o resquício de uma chama acesa nas origens silenciosas do cinema – quando artistas saídos do vaudeville tinham de escapar ilesos de tombos e peripécias. Para Buster Keaton, o segredo era relaxar o corpo e não apartar a queda com as mãos. Entre um esfolado e outro, ele chegou a quebrar o pescoço em “Sherlock, Jr.”, produção de 1924.

Cem anos atrás, afinal, não havia código a ser obedecido. Se o astro do filme topava saltar de um desfiladeiro, não havia ninguém para impedi-lo. Eram equipes relativamente pequenas compostas por pessoas extraordinárias que tornavam o impossível em possível. E assim, criaram imagens indeléveis – com sangue, suor, lágrimas, fraturas, rompimentos, luxações etc..

Mesmo passando por diretores de estilos diversos, “Missão Impossível” sempre manteve este encantamento primordial pelo inacreditável. Há milênios, a humanidade se reúne para assistir desde execuções públicas até uma apresentação de poodles adestrados pulando corda – Tom Cruise está em algum lugar deste espectro.

Quando “Acerto de Contas” elegeu a inteligência artificial como o seu vilão, o agente Ethan Hunt se posicionou como o defensor da humanidade em si, desta característica que nos torna, simultaneamente, tanto desprezíveis como encantadores. Até o desprezível é defensável diante daquilo que é desprovido de qualquer natureza – e que, no entanto, ainda tenta substituí-la.

É esta tensão constante entre a vida e a morte, a perfeição e a falibilidade, que possibilita todo este espetáculo tão maravilhoso e horripilante. A chance de que um deslize qualquer, até uma gotinha de suor, possa colocar tudo a perder. Não há nada de emocionante em ver uma máquina idiota falhando – já lidamos com bots incompetentes no dia a dia. Mas, ah, quando Cruise salta daquele prédio e quase não alcança o próximo…

Já nos cinemas, “Acerto Final” vem sendo divulgado como o último “Missão Impossível” – pode ser, talvez, quem sabe. Meu palpite, porém, é de que este é aquele momento em que a banda já deu o seu boa noite ao público, mas ainda aguarda nas coxias pelos gritos alucinados antes de retornar ao palco para o bis protocolar. Cruise não irá aceitar uma aposentadoria tranquila.

Por causa deste melindre todo, contudo, “Acerto Final” acaba deixando de lado o conflito entre  homem e máquina para se dedicar a uma espécie de eulogia em vida, com mil discursos e homenagens. A IA ainda está lá, planejando a dominação mundial, mas sem plantar o caos entre Ethan e seus agentes, que era o aspecto mais interessante do filme anterior.

O diretor e roteirista Christopher McQuarrie até ensaia uma análise de consciência do protagonista, com a revelação de que os seus atos heróicos de antes causaram uma reação catastrófica – mas logo retorna o tom aprazível de “Arquivo Confidencial” de Ethan Hunt. Relevo a forçada de barra porque, eu repito, o ator é doido e ninguém mais faz o que ele faz.

Uns parágrafos acima, disse que artistas do cinema mudo, como Buster Keaton, criaram imagens indeléveis. Acredito que, apesar dos seus defeitos, “Acerto Final” também criou a sua. Depois de uma sequência pavorosa (no ótimo sentido) dentro de um submarino russo, vemos Hunt nadando em direção à superfície do oceano Ártico.

Com o seu corpo de 62 anos e 0% de gordura, Tom Cruise se debate, sem sinal algum de outra criatura ao seu redor, na imensidão indiferente das águas gélidas. Sem tanque de oxigênio, ele ascende numa busca frenética pela luz. Ele é o último de sua espécie e, contra todas as probabilidades, ainda luta para derrotar a própria extinção. Quem vive de números é robô.

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