“Vez por outra acontece de o vilão dos filmes de Hollywood ser uma ‘corporação capitalista maligna’. Longe de enfraquecer o realismo capitalista [a crença de que é impossível imaginar um sistema econômico alternativo ao capitalismo], esse anticapitalismo gestual, na realidade, reforça-o[…]o filme performa nosso anticapitalismo para nós, nos autorizando assim a continuar consumindo impunemente[…]Contanto que acreditemos (em nossos corações) que o capitalismo é mau, somos livres para continuar participando da troca capitalista.”
Mark Fisher, “Realismo Capitalista”
Vi alguns críticos descreverem o novo “O Sobrevivente”, refilmagem com Glen Powell de um filme estrelado por Arnold Schwarzenegger, como “revolucionário”. De fato, a revolução está na moda. Em setembro mesmo, escrevi sobre “Uma Batalha Após a Outra” e “Eddington”, ambos filmes políticos de diretores que não costumam fazer declarações políticas. O revolucionário da vez, no entanto, não parece tão investido em contestar o sistema, mas em reforçá-lo.
Dirigido por Edgar Wright, de “Todo Mundo Quase Morto” e “Baby Driver”, “O Sobrevivente” segue a tendência (aparentemente, infinita) de adaptações da obra de Stephen King – de cabeça, é a terceira ou quarta de 2025, sem contar a série relacionada à franquia “It”. Quase quarenta anos atrás, o escritor americano rejeitou a versão do diretor Paul Michael Glaser, e é fácil de entender o motivo logo nos primeiros minutos do filme.
Em 1987, Schwarzenegger já não era um novato, mas ainda não tinha feito os filmes que lhe consolidariam como uma estrela inquestionável, que são “O Vingador do Futuro” (1990), “O Exterminador do Futuro 2” (1991) e “True Lies” (1994). Em “O Sobrevivente”, o amadorismo do ator ex-fisiculturista combina perfeitamente com o valor da produção e o roteiro recheado das típicas frases de efeito que o machismo da era Reagan nos proporcionou.
Schwarzenegger é apresentado, num futuro distópico de 2017, como um policial que pilota um helicóptero, sobrevoando uma manifestação de civis famintos e desarmados. Pelo rádio, ele recebe a ordem para abater todos, sem distinção. Ele se nega e, de maneira hilária, é dominado pelos colegas à bordo e mandado à prisão. Apesar do gesto nobre, os demais prisioneiros não o veem como “um dos nossos” – afinal, ele era um policial.
Por incrível que pareça, é um ponto de partida mais interessante do que o de Wright, pois não há ambiguidade alguma no personagem agora interpretado por Glen Powell – ator que Hollywood insiste que é a próxima grande sensação, a despeito de um desempenho mediano em tudo que fez até o momento. Ben Richards não é mais um policial, mas um operário de chão de fábrica que acaba de ser demitido.
O desempregado não é forçado pelo Estado – ao menos, não literalmente – a participar de um reality show mortal, mas se inscreve por conta própria, porque a filhinha está doente e não tem dinheiro para tratá-la. Para o espectador, não há dúvidas com relação ao seu caráter. Ele começa e termina o filme como um herói politizado, com letramento midiático e consciência de classe.
Na primeira adaptação, “The Running Man” (em tradução livre, “O Homem em Fuga”) é um programa punitivista em que prisioneiros são perseguidos e executados, tudo diante das câmeras. Os “caçadores” são idolatrados pela plateia como super-heróis, com direito a fantasias e apelidos. O produtor do programa procura um arquivilão que aumente o ibope. Quem melhor do que o policial do helicóptero que teve um surto e matou todos aqueles inocentes?
Se a realidade pode ser distorcida na criação de uma narrativa até mesmo contra alguém que fazia parte do sistema, por que deveríamos lealdade a ele? – este é um questionamento que Wright lembra de fazer quase no final de “O Sobrevivente”. Até lá, contudo, o diretor conseguiu encaixar ao menos dois “product placements” (“publi”, em linguajar Hollywoodiano).
Independente de qual obra seja mais fiel ao livro de King – o escritor também detestou “O Iluminado”, fidelidade não é sinônimo de qualidade –, o novo “O Sobrevivente” não parece ter nascido da mesma angústia que Paul Thomas Anderson e Ari Aster sentiram quando fizeram “Uma Batalha Após a Outra” e “Eddington”, mas de um faro atinado à onda do momento.
Antes um diretor tão vibrante, agora Wright finge oferecer o novo enquanto segue pelo caminho seguro da nostalgia e da falta de originalidade, tanto no princípio em si da refilmagem quanto na adoração retrógrada ao herói musculoso dos filmes de ação de outrora. Ainda que o discurso pareça rebelde, é tão revolucionário quanto uma camiseta velha do Che Guevara.
Voltando à Mark Fisher, afinal:
“O capitalismo é o que sobra quando as crenças colapsam ao nível da elaboração ritual e simbólica, e tudo o que resta é o consumidor-espectador, cambaleando trôpego entre ruínas e relíquias.”