Enquanto as operadoras de cartão de crédito forçam o banimento de jogos para proteger as criancinhas de influências maléficas, elas já estão sendo doutrinadas – e instrumentalizadas – de maneira muito mais insidiosa. Em “A Hora do Mal” (tradução péssima do original “Weapons”, ou seja, “armas” em inglês), a verdadeira ameaça às futuras gerações se aproveita de sua aparência inofensiva e um tanto quanto ridícula.
Em um subúrbio americano, às 2h17 da madrugada, crianças de uma mesma sala de aula deixaram as suas camas, destrancaram as portas de suas casas e saíram correndo rumo à escuridão. Sem bilhetes de despedida ou qualquer indício de um plano de fuga em massa, a polícia tem apenas duas testemunhas para interrogar: Alex, o único menino que apareceu na escola na manhã seguinte; e Justine, a professora da turma.
Frustrados pela falta de respostas, os pais dos desaparecidos culpam, é claro, a professora. Para eles, ela deve ter dito ou feito alguma coisa para as crianças sumirem e agora não quer abrir o bico. Interpretada por Julia Garner, Justine se afoga na bebida e nos contatinhos para lidar com as ameaças anônimas. Teimosa, ela insiste em ir atrás de Alex para descobrir o que aconteceu, mesmo arriscando a própria carreira.
Dirigido por Zach Cregger, de “Noites Brutais”, “A Hora do Mal” divide a trama em perspectivas diferentes, indo e voltando no tempo para elucidar o mistério – estrutura já vista em obras como “Pulp Fiction”, “Trainspotting” e “Magnólia”. Assim, há segmentos para Justine; Archer (Josh Brolin), o pai de uma das crianças; o policial Paul (Alden Ehrenreich); Marcus (Benedict Wong), o diretor da escola; o meliante James (Austin Abrams); e, por fim, o garoto Alex (Cary Christopher).
“A Hora do Mal” é muito mais ambicioso do que “Noites Brutais”, mas também faz uso de mudanças repentinas de gênero, além de uma breve participação do ator Justin Long. Em todos os segmentos, os personagens possuem personalidades distintas, com histórias pregressas e dinâmicas específicas – é evidente que Cregger gosta deles e que passou tempo considerável pensando em suas relações, ainda que nem todos tenham um final feliz.
Disse mais acima, por exemplo, que Justine é teimosa e esta característica não serve apenas como um tempero a mais, mas como uma força motora das várias atitudes questionáveis que ela toma – em seu lugar, depois de ser achincalhada daquele jeito, nem permaneceria na mesma cidade. De outro lado, como um policial casado com a filha do chefe, tentando manter a sobriedade e seguir o protocolo à risca, Paul corre um risco ainda maior caso perca o controle.
Em seu segmento, quando o brutamontes Archer vai questionar a família de outra criança desaparecida, há uma certa resistência, por parte da mãe, em ajudá-lo. Ao acostar o pai na porta da garagem, o rapaz franzino chega a fazer um breve gesto defensivo, como se estivesse prestes a apanhar. Depois, ficamos sabendo que o filho de Archer é justamente o bully da turma – é cabível supor que o menino aprendeu o mau comportamento dentro de casa.
São pequenos detalhes assim, aparentemente irrelevantes, que tornam “A Hora do Mal” tão divertido e vivo. Mencionei “Pulp Fiction”, “Trainspotting” e “Magnólia” porque, de fato, me senti como se estivesse vendo algo da virada do século, quando os cineastas corriam mais riscos. Pela repetição, a estrutura segmentada poderia ser enfadonha, mas só contribui à criação desses microcosmos, que se revelam ainda mais ricos quando vistos por ângulos diferentes.
Cregger também consegue a proeza de fazer um filme sobre a atual condição política dos Estados Unidos sem nunca sequer mencionar os elementos mais óbvios do tema, como fascismo, intolerância, opressão etc.. Em “A Hora do Mal”, uma turba de pais suburbanos culpam uma jovem professora por uma suposta doutrinação das crianças, mas a verdadeira culpada pelo desaparecimento é infiltrada nas próprias famílias.
O perigo, afinal, não está nos videogames, na internet ou nas más companhias, mas dentro de casa. “Pecadores” já havia tratado da criatura que é convidada a entrar e que devora todos os presentes – tanto de maneira literal, ao chupar o sangue das vítimas, como de maneira simbólica, absorvendo as suas culturas. Quando convidado, o monstro de “A Hora do Mal” coloca uns contra os outros, em benefício próprio.
Não quero dar spoilers, mas basta dizer que Donald Trump era visto, anos atrás, como nada além de uma piada. Uma criatura pitoresca, com um cabelo cafona, que não poderia representar nada grave porque… olha a cara dele. E, assim, o fascismo foi convidado a entrar, não só nos Estados Unidos, mas no mundo todo – com monstros patéticos, risíveis, que chegam a inspirar pena, mas que comandam seus exércitos particulares de lobotomizados para atacar seja quem for o alvo da vez.