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Mas ela é madura para a idade

O grooming em "Priscilla" e "Segredos de um Escândalo".
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Na ficção científica, é comum encontrarmos o arquétipo da mulher lindíssima com a mente de uma criança ingênua, como a Leeloo de “O Quinto Elemento” ou a Quora de “Tron – O Legado”. No YouTube, o canal “Pop Culture Detective” batizou o tropo narrativo de “born sexy yesterday” – ou “nasci ontem e já sou sexy”.

São robôs, alienígenas ou criaturas mágicas (interpretadas por atrizes adultas) que não têm conhecimento das normas sociais e que, por falta de parâmetros, acabam se apaixonando pelo primeiro homem que encontram (só assim Kim Basinger se interessaria por Dan Aykroydl, em “Minha Noiva é Uma Extraterrestre”). Na vida real, o que mais se aproxima desta fantasia é pegar uma novinha.

Priscilla tinha 14 anos quando conheceu Elvis, dez anos mais velho. Uma década de diferença não seria nada se os dois já fossem adultos – e se Elvis não fosse o homem mais famoso do planeta. Já nos cinemas, o novo filme da diretora Sofia Coppola confirma o abuso ocasionado pelo imenso desequilíbrio de poder entre os dois.

A desculpa de que “os tempos eram outros” não é válida. É verdade que muitos artistas célebres (alguns, ainda vivos) conheceram suas esposas quando elas eram menores de idade. Charlie Chaplin, por exemplo, tinha 53 anos quando se casou com Oona, de 18. Já Jerry Lee Lewis tinha 22 quando se casou com a prima de 13.

Por mais que fosse “comum”, casar com uma criança nunca foi correto. Afinal, também era comum encher as casas de amianto ou ver médico incentivando paciente a fumar. Em “Priscilla”, Elvis espera que a esposa (que já morava com ele desde os 17) se adapte ao seu estilo de vida e sirva aos seus interesses – algo que uma mulher mais velha e independente não toleraria tão fácil.

De toda forma, o intuito da obra não é bem “cancelar” o rei do rock, mas tratar da libertação de uma menina presa numa cafonérrima gaiola dourada, tema favorito da diretora de “Virgens Suicidas” e “Maria Antonieta”. Não é Elvis o único responsável pelo sofrimento de Priscilla, mas o patriarcado que fazia com que todas as mulheres ao seu redor fossem tratadas como funcionárias – até a avó do cantor servia como uma espécie de empregada.

Ao longo do filme, a atriz Cailee Spaeny, que interpreta Priscilla, se transforma diante dos nossos olhos. Muito mais baixinha e frágil do que Jacob Elordi, que dá vida ao astro, ela se parece mesmo com uma adolescente indefesa. Testemunhar a forma com que Elvis manipula a garota, e a sua eventual fuga, é quase como assistir um suspense.

Prestar atenção nas caracterizações é crucial. Elvis exigia, por exemplo, que Priscilla pintasse os cabelos de preto e, conforme ela vai se desvencilhando das garras dele, seus cabelos vão lentamente retornando à cor natural. Ela também abandona os vestidos comprados pelo marido e passa a usar calças e camisas, expressando os seus próprios gostos.

Ainda em janeiro, há a estreia de outro filme que toca na questão do abuso de menores, ou do chamado “grooming”. Em “Segredos de um Escândalo”, Gracie (interpretada por Julianne Moore, de 62 anos) é casada com Joe (personagem de Charles Melton, de 32). Os dois se conheceram trabalhando em um pet shop, quando Joe ainda frequentava o colégio.

Joe também está ali para atender às necessidades emocionais de Gracie, uma mulher narcisista que sente inveja da juventude dos próprios filhos e vive fazendo comentários passivo-agressivos. Como uma borboleta que coloca uma patinha para fora do casulo, Joe começa a se questionar se o “consentimento” que ele deu ainda adolescente poderia mesmo ser considerado como tal.

Com direção de Todd Haynes, “Segredos de um Escândalo” é mais ambicioso do que “Priscilla” e toca em outras questões delicadas – assim como “Assassinos da Lua das Flores”, o filme critica a forma com que o “true crime” se aproveita do sofrimento das vítimas – mas é ainda mais evidente o apagamento da identidade de Joe.

Aos 17 anos, eu tive um relacionamento com uma pessoa muito mais velha e demorei muito tempo para perceber que não tinha informação suficiente para tomar as decisões que eu achava que estava tomando, que eu não sabia o que era normal ou não em um namoro e que acabei aturando coisas que não devia ter aturado. “Mas ela é madura para a idade,” diziam.

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