“A vida, ainda que possa ser apenas um acúmulo de angústias, é querida para mim, e irei defendê-la.”
Mary Shelley.
A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo é um evento que passa rápido, não há muito tempo para refletir entre um filme e outro. Tenho pena dos colegas que precisam publicar algo às pressas. Já trabalhei assim, tendo de entregar um texto pronto horas depois da sessão, e sempre preferi esperar que a obra se assentasse na minha mente por alguns dias.
Assisti “Frankenstein”, do diretor Guillermo del Toro, no dia 20, e o coreano “No Other Choice” no dia 23. Vi “O Agente Secreto”, com Wagner Moura, no dia 25. E “Blue Moon”, do Richard Linklater, no dia 26.
Descrevo parte da minha agenda só para dar uma amostra dos universos pelos quais tenho passeado. Embora sejam filmes bastante díspares, há uma certa tristeza em todos eles, um luto pelo tempo que passou e um pessimismo com o porvir.
Hoje, quero me concentrar em “Frankenstein” e “No Other Choice”. Em termos de ambientação, enredo, estilo etc., são os que menos aparentam, à distância, ter algo em comum. E, no entanto, sinto que ambos partem do mesmo tormento.
Vencedor do Oscar por “A Forma da Água”, del Toro nasceu para dirigir “Frankenstein”. Desde sempre, o mexicano enxerga os monstros pelo o que representam na realidade, isto é, todos aqueles que vivem às margens da sociedade, os que não se encaixam no padrão – as “aberrações”, em referência ao clássico de Tod Browning.
Publicado em 1818, o romance gótico de Mary Shelley é uma das obras mais influentes da literatura e foi adaptado para o teatro diversas vezes. Foi em Hollywood, contudo, onde o ator Boris Karloff e o maquiador Jack Pierce conceberam a imagem indelével da criatura com os parafusos no pescoço.
“Frankenstein”, de 1931, é parte dos monstros clássicos dos estúdios Universal – um castelo dos horrores que inclui “O Médico e o Monstro” (1913), “O Corcunda de Notre-Dame” (1923), “O Fantasma da Ópera” (1925), “Drácula” (1931), “A Múmia” (1932), “O Homem Invisível” (1933), “A Noiva de Frankenstein” (1935) e tantos outros.
Um dos mestres do castelo foi James Whale, diretor de “Frankenstein” e de mais dois dos títulos citados acima. Whale era gay e não fazia questão de esconder a própria sexualidade – pelo contrário, driblava a censura da época com insinuações e acenos aos “entendidos”. Em seu “Frankenstein”, a turba do vilarejo, que persegue a “aberração” até o moinho, tem outra conotação.
A subversão é intrínseca ao terror. Por definição, o gênero ultrapassa os limites, desafia as normas estabelecidas e toca em assuntos que, em certos círculos sociais, não poderiam ser sequer mencionados. Ainda hoje, só carrega a pecha de “filme B” (por que outro motivo teriam inventando o termo “terror elevado”?) e é tratado como um produto cultural de segunda classe pois o terror ousa olhar para o desprezível – e deve ser, portanto, desprezado.
Quem melhor para compreender este componente político do que o diretor de “O Labirinto do Fauno”?
No novo “Frankenstein”, não há nada de “filme B”. Os sets são luxuosos e os figurinos, com referências às obras de Whale, são deslumbrantes. Em uma exibição, o diretor enfatizou que os cenários são reais, isto é, os atores não estão atuando diante de uma tela verde; e que a produção não utilizou inteligência artificial em etapa alguma:
“É uma ópera, feita por humanos para humanos. É um filme para nos lembrarmos de que a arte não é só necessária, é urgente. E a IA que vá se foder!”, ele concluiu.
De fato, toda a direção de arte, apesar dos animais feitos em CGI, transborda carinho e atenção – seja com a matéria-prima, com o terror gótico ou com o monstro em si. “Frankenstein” só se revela como algo além de um espetáculo visual quando abandona o ponto de vista do cientista, interpretado por um Oscar Isaac pouco convincente, e adota o da criatura, vivida por Jacob Elordi.
Ainda que tenha trabalhado com Sofia Coppola em “Priscilla”, Elordi era visto como um rostinho bonito – rostinho este localizado no topo de seus 1,95m – e pouca coisa mais. Sua interpretação da criatura, no entanto, é de uma vulnerabilidade tocante.
Por parte considerável de “Frankenstein”, ele repete uma única palavra, mas cada músculo de seu corpo (quase inteiramente exposto, a não ser por uma espécie de sunga feita de ataduras) se move em serviço das emoções do personagem. O conjunto todo, da altura imponente aos traços mais angelicais do rosto, evoca emoções complexas.
Como um recém-nascido gigante, ele vê prazer nas descobertas mais simplórias, mas Elordi nunca o faz de maneira débil, como se desdenhasse da inocência que a criatura demanda – por muitos anos, Karloff se ressentiu por ser associado ao papel de uma criatura burra, que só soltava grunhidos, e exigiu personagens que fossem mais eloquentes, para demonstrar todo o seu talento.
De maneira silenciosa, porém, vemos o medo e o sentimento de traição nos olhos de Elordi ao ser renegado e maltratado pelo próprio criador. E é de partir o coração.
À sua adaptação, del Toro adicionou um componente geracional (o cientista trata a criatura como foi tratado pelo próprio pai) – um toque autobiográfico, talvez. Aos 60 anos, ele mesmo declarou que ficou feliz por materializar a sua visão de “Frankenstein” só agora, “não como o filho de meu pai, mas como o pai de minhas filhas”.
Em diálogo constante com o contexto político atual, há muitas denúncias em “Frankenstein” – contra uma elite que financia barbaridades; contra a masculinidade que, geração após geração, perpetua os mesmos traumas; contra a arrogância daqueles que querem definir quem merece ser tratado como ser humano; contra um “progresso” supostamente inevitável, liderado por quem não valoriza a vida, pois só tem a lucrar com a morte.
E é aqui que eu gostaria de saltar para “No Other Choice”.
Duas décadas atrás, Park Chan-wook já impressionava e chocava os espectadores com a sua trilogia da vingança – “Sympathy for Mr. Vengeance”, “Lady Vengeance” e, o mais famoso dos três, “Oldboy” (este vítima de uma refilmagem vergonhosa, feita pelo diretor Spike Lee). Não se tratam de filmes de terror, mas perturbam a mente e o espírito como se fossem (é um elogio).
Assim, conhecendo a filmografia do diretor, que inclui o mais recente “Decisão de Partir”, o tom farsesco de comercial de margarina do início de “No Other Choice” (em tradução livre, “sem alternativa” ou “sem escolha”) só pode significar um prenúncio sinistro. Algo horrível está prestes a acontecer com a família perfeita de Yoo Man-soo.
Interpretado por Lee Byung-hun, ator que já havia colaborado com Park em “Zona de Risco”, Yoo foi demitido da fábrica de papel onde dedicara toda a sua vida. Com dificuldade de encontrar outro emprego numa indústria moribunda (olá, jornalismo cultural), sua esposa é forçada a voltar a trabalhar, a casa é colocada à venda e, para economizarem na ração super premium, até os cachorros da família vão passar uma temporada longe – o que deixa a caçula arrasada.
Ainda que “No Other Choice” nunca se refira à menina como autista, Park evidencia o seu desconforto durante um abraço apertado. Ela também tem o hábito de repetir certas palavras ou frases fora de contexto, um comportamento comum no TEA, conhecido como ecolalia. De acordo com a professora de música, ela é um prodígio do violão cello – instrumento, porém, que a menina nunca tocou na presença dos pais (é o cello de Chekhov).
Muitos autistas adultos sofrem intensamente por mudanças repentinas, imagine crianças pequenas, sem ferramentas para lidar com as próprias emoções. A ausência dos cachorros é, para ela, um verdadeiro desespero. Yoo decide, portanto, tomar medidas drásticas para arranjar um emprego e trazê-los de volta – eliminar a concorrência.
Para aumentar as suas chances de contratação, seus alvos são desempregados como ele, mas com currículos melhores que o seu. Homens muito parecidos com ele mesmo, que amam as minúcias por trás da fabricação dos mais variados tipos de papel; que também têm famílias e contas a pagar, e que também estão sofrendo tanto quanto ele.
Em “No Other Choice”, o desemprego é uma humilhação emasculante e, para não lidar com a dor, os mais desolados se rendem ao torpor do álcool. A princípio, Yoo se compadece, pois sabe exatamente como eles se sentem – mas o capitalismo exige sacrifícios, mesmo que sejam em nome do “progresso”. Para garantir o sustento, Yoo terá de perder a própria humanidade.
Como sempre, o diretor oferece um desbunde visual, com as suas transições inusitadas e cores extravagantes – seu estilo segue vibrante como era nos anos 2000.
Com quase a mesma idade de del Toro, Park também reflete a paternidade e os traumas que os pais deixam de herança para os filhos. Assim como “Frankenstein”, “No Other Choice” é um clamor pela empatia, característica que separa os seres humanos dos verdadeiros monstros.
Tem certeza que não há mesmo outra escolha?
 
								 
								 
								 
								