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O realismo na fantasia

Por que elfos negros ou guerreiras poderosas incomodam?
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Com mais de 9 milhões de inscritos, “CinemaSins” é um canal do YouTube conhecido pela série de vídeos em que um narrador aponta tudo o que há de “errado” com algum filme. Por exemplo, em “Cinquenta Tons de Cinza”, é considerado um “pecado” a protagonista encontrar uma vaga para estacionar o carro bem na frente do prédio de Christian Grey.

O “correto” seria, talvez, mostrar Anastasia dando três voltas no quarteirão em busca de uma vaga para acabar parando em um estacionamento a duas quadras dali. Não importa se o filme tem um tempo limitado para apresentar os personagens e contar uma história com início, meio e fim. É preciso ser “realista”.

Mesmo que você nunca tenha visto um vídeo do “CinemaSins”, esse tipo de abordagem se alastrou pela internet. Quando falta arcabouço para tratar dos temas de um filme, de suas especificidades técnicas ou artísticas, é fácil se sentir inteligente apontando “defeitos” que, na verdade, são apenas convenções.

Ao contrário do que se pensa, a crítica cinematográfica não é um jogo dos sete erros. Não é dever do crítico dizer o que há de “errado” com uma obra de arte. Para Roger Ebert, um bom crítico é como um professor, ele oferece caminhos possíveis para que o leitor procure a sua própria resposta.

Mesmo quando fazemos críticas negativas, não nos concentramos em detalhes bobos como uma vaga livre na frente do destino da protagonista, mas naquilo que poderia tornar a trama inverossímil, como uma ação que não condiz com o personagem que nos foi apresentado e que desafia toda a proposta do filme.

É preciso, então, diferenciar realismo de verossimilhança. Um alienígena que voa por aí com uma capa vermelha não é realista, mas pode ser verossímil. De acordo com o conjunto de regras que os criadores nos apresentam, ele pode voar, mas não pode se transformar num tigre. Seria estranho se, sem explicação alguma, Super-Homem virasse um felino.

Há quase 15 anos, as bilheterias são dominadas pela fantasia, mas o espectador nunca esteve tão cético, tão preocupado com o “realismo”. Apesar de consumir um entretenimento feito – em grande parte – para crianças, o espectador não quer ser feito de bobo e, para não ser ludibriado, passa o tempo todo procurando furos, como se tivesse medo de cair numa pegadinha.

Por trás dessa constante sinalização de esperteza, há uma insegurança reacionária. Os fãs se dizem preocupados com a falta de “realismo” em séries fantásticas como “A Casa do Dragão” e “Anéis do Poder” porque “não havia negros na Europa da Idade Média” – eles admitem a existência de elfos e dragões, mas não podem concordar com a presença de negros.

Toda personagem feminina que se mostra poderosa, como a Rey de “Star Wars” ou a Naru de “O Predador: A Caçada”, é chamada de “Mary Sue”, um termo utilizado por nerds que acreditam que homens podem ser fortes e habilidosos por nascença, sem preparo algum, mas que não aceitam que mulheres também podem ser igualmente capazes.

Concordar com a presença de negros ou acreditar na força de mulheres fictícias em filmes e séries de fantasia seria o mesmo que permitir com que essas pessoas, antes excluídas, possam ocupar esses espaços predominantemente brancos e masculinos – seja no universo da ficção ou na própria indústria do entretenimento.

Por isso, não adianta apontar a falta de lógica quando dizem que uma sereia jamais seria negra porque a pele escura precisa da luz do sol para produzir melanina, mesmo quando sereias não existem. A questão não é, nem nunca foi, a busca pelo realismo, mas a reafirmação da própria soberania, da própria superioridade.

Em 1975, Toni Morrison deu um discurso em que dizia que a função do racismo é a distração – “impede você de fazer o seu trabalho, mantém você explicando, repetidamente, a sua razão de ser”. Para aqueles que ainda tentam se agarrar aos valores dos séculos passados, como se fossem sobreviventes do Titanic nas águas gélidas do Atlântico, sempre vai ter algo incomodando.

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