Se o cinema vem sendo dominado pelos heróis, a televisão americana tem sido o reduto do chamado “true crime”, com adaptações de livros, artigos e podcasts sobre casos envolvendo assassinato ou falcatrua. Parece que dramatizar um crime real, que já foi retratado em documentário ou amplamente discutido, é a única forma de abordar assuntos adultos.
Apenas em 2022, tivemos a minissérie “The Staircase” (baseada no documentário homônimo), “The Girl from Plainview” (baseada no documentário “Eu te Amo, Agora Morra”), “Inventing Anna” (sobre a herdeira farsante), “The Dropout” (sobre a empreendedora farsante e também tema de documentário), “Candy”, “Under the Banner of Heaven” etc…
Eis que surge a fictícia “Shining Girls”, da Apple TV+, sobre a caçada a um serial killer de mulheres, mas com um criativo elemento sobrenatural: viagem no tempo. Criada por Silka Luisa, a série não se concentra no criminoso ou no suposto detetive que irá investigar o caso, mas em uma de suas vítimas, a sobrevivente Kirby, vivida por Elizabeth Moss.
A mudança de perspectiva é bem-vinda, considerando que o gênero do “true crime”, apesar de ser majoritariamente consumido por um público feminino, estimula um certo endeusamento de figuras horrendas como Jack o Estripador, Zodíaco ou Ted Bundy – às custas das centenas de mulheres vitimizadas, que nunca são lembradas pelos nomes.
Desde que foi atacada, Kirby mantém um caderno com anotações básicas sobre quem ela é, onde mora, onde trabalha, porque tudo parece mudar constantemente. Seus cabelos mudam sem que ela se lembre de cortá-los, seu apartamento vai parar em outro andar do prédio. É como se o trauma tivesse fragmentado a própria realidade.
Para ajudar na captura do assassino, interpretado com frieza assustadora pelo ator britânico Jamie Bell, e dar fim a esses supostos lapsos de memória, Kirby conta com a experiência do jornalista Dan Velazquez (o brasileiríssimo Wagner Moura, intercalando falas em inglês, espanhol e português), um pai solteiro que sofre de alcoolismo.
“Shining Girls” não faz questão de segurar a mão do espectador para explicar o que está acontecendo. Os primeiros episódios podem parecer herméticos, mas a persistência com a série é recompensada por um capítulo final bastante catártico, em que Kirby deixa de ser a vítima fragilizada e toma posse de quem ela verdadeiramente é – um bálsamo contra o “true crime”.