Qual é o problema com “Emilia Pérez”?
Indicado em 13 categorias, “Emilia Pérez” é um musical passado no México sobre um chefe de um cartel de drogas (Karla Sofía Gascon) que contrata uma advogada (Zoe Saldaña) para facilitar a sua transição de gênero – sem que a esposa (Selena Gomez) e os filhos saibam.
É um filme dirigido por um francês que, apesar de ser ambientado no México, não foi filmado lá e nem tem muitos atores mexicanos (Gascon é espanhola, Saldaña e Gomez são americanas). O diretor Jacques Audiard também não se deu ao trabalho de pesquisar a cultura mexicana e tampouco fala espanhol.
É claro que cineastas podem fazer filmes passados em países que desconhecem, mas “Emilia Pérez” tem como ponto focal a violência provocada pelo narcotráfico mexicano. Esse aparente descaso com a seriedade do tema é ofensivo às milhares de vítimas, que não se veem refletidas num olhar estrangeiro e desinteressado.
Para completar, o diretor também deu declarações de que, mesmo não sabendo falar o idioma, queria que “Emilia Pérez” fosse falado em espanhol porque é a “língua dos países modestos, dos países subdesenvolvidos, dos pobres, dos migrantes”.
E a questão trans?
Pessoas trans também destacaram tropos narrativos que são nocivos, como a ideia de uma identidade trans envelopada em mentiras – de alguém que, quando perde a calma, volta a se portar como homem, dando a entender que, no resto do tempo, ela estaria apenas se “fingindo” de mulher. Além disso, o roteiro parece punir a personagem pela transição.
“Emilia Pérez” é feito por um homem cisgênero, que já demonstrou não estar muito preocupado com os temas que ele aborda, e que busca provocar empatia por meio da tragédia – uma “boa intenção”, se tanto, mas que, como efeito prático, só reforça narrativas violentas envolvendo mulheres trans.
Com relação a este tipo de representatividade, recomendo o documentário “Disclosure” (2020).
E por que estão cancelando a Karla Sofía Gascon?
Durante a cerimônia do Globo de Ouro, foi instaurada uma rivalidade entre “Emilia Pérez” e o brasileiro “Ainda Estou Aqui”. Em uma viagem ao Brasil para promover o musical, Gascon pediu ajuda para Fernanda Torres porque estaria sendo atacada por brasileiros em suas redes sociais – pedido que Fernanda atendeu gentilmente.
Logo em seguida, em entrevista ao jornal Folha, Gascon disse que o seu filme estava sendo atacado por pessoas da equipe de Fernanda e que isso refletia muito mais em “Ainda Estou Aqui” do que em “Emilia Pérez”.
Uma mulher muçulmana se recordou de alguns tweets islamofóbicos de Gascon e começou a divulgá-los. E, então, foi aberta a caixa de Pandora. Brasileiros começaram a compartilhar tweets não tão antigos assim (de três ou quatro anos atrás) com declarações racistas, ofensas à América Latina e até mesmo à cerimônia do Oscar, por premiar produções de negros e coreanos.
A princípio, foi divulgada uma nota de desculpas bastante corriqueira. Gascon, no entanto, não conseguiu se afastar da internet e só foi piorando a sua situação, com uma fala mais megalomaníaca e delirante do que a anterior.
Em resumo, ela se considera a grande vítima de uma vasta conspiração movida por energias sombrias – mesmo que ela tenha, sim, escrito aqueles absurdos todos.
A Netflix já informou que não irá mais pagar as despesas da atriz, como passagens de avião e hospedagens, durante a campanha de “Emilia Pérez” pelo Oscar. Não porque a Netflix se importa com os grupos que Gascon ofendeu, mas porque se tornou insustentável defendê-la sem prejudicar as chances de um filme antes visto como o favorito.
E o rolo da Fernanda Torres?
Bom, na tentativa de encontrar algo de podre no histórico da atriz brasileira, acharam uma esquete feita para o “Fantástico” em que Fernanda usa blackface, isto é, uma maquiagem escura para interpretar uma mulher negra.
A esquete tem quase vinte anos e, embora seja mesmo uma prática preconceituosa, não havia essa consciência na época. No Brasil, blackface também nunca teve a mesma conotação que tem hoje nos Estados Unidos.
Em contraste com Gascon, Fernanda soltou uma nota que deveria ser estudada por times de relações públicas. Ela explicou as circunstâncias da esquete, mas admitiu o erro e mostrou que compreendia todos os motivos daquilo representar um problema – e pediu desculpas, não para quem “se sentiu” ofendido, mas pelo o que fez.
Mas a Zoe Saldaña também não fez blackface?
Fez. Anos atrás, ela usou uma maquiagem mais escura, uma prótese para alargar o nariz e uma peruca de cabelo crespo para interpretar a cantora Nina Simone em uma cinebiografia. Mesmo sendo negra, ela utilizou o privilégio que ela tem da cor clara para interpretar uma mulher muito mais escura – e, assim, acabou tirando a oportunidade de uma atriz mais parecida com Simone.
Nos Estados Unidos, negras de cor clara têm menos dificuldade para conseguir papéis do que negras de cor escura. Há um ressentimento com relação àquelas que podem “se passar” por brancas, mas que adotam a cultura negra quando convém (para conseguir um trabalho, por exemplo).
Saldaña já havia declarado o seu arrependimento por ter feito o filme.
E mais alguém fez blackface?
Infelizmente, sim. Adrien Brody, de “O Brutalista”, apresentou a atração musical de um “Saturday Night Live” antigo usando uma peruca de dreadlocks e fazendo um sotaque jamaicano bem forçado. Só não pintou a pele. Por muito tempo, os rumores diziam que ele foi banido do programa justamente pela imitação racista, mas o ator diz que não é verdade.
Brody também agarrou Halle Berry e deu um beijo nela, sem consentimento, ao “comemorar” o Oscar que recebeu em 2003, por “O Pianista”. Na época, foi visto como uma brincadeira inocente e não houve qualquer tipo de reprimenda ou mesmo pedido de desculpas.
Só tem isso de rolo com “O Brutalista”?
Não. Aqui as coisas se complicam. Parte da equipe disse que usou inteligência artificial para melhorar os sotaques húngaros dos atores e também para criar projetos de arquitetura brutalista – afirmações que depois foram desmentidas ou minimizadas pelo diretor.
Por exemplo, ele disse que algumas imagens teriam sido criadas no Midjourney, mas que depois foram refeitas por um artista. Não era mais fácil ter começado direto com o artista? Não há referências de brutalismo no mundo real?
Muitos também questionaram se a ferramenta utilizada para melhorar os sotaques não era uma ferramenta qualquer de pós-produção sendo chamada de “inteligência artificial” porque, hoje em dia, tudo é chamado de “inteligência artificial”. Por outro lado, se um ator recebe uma ajudinha tecnológica com o sotaque do personagem, é justo que ele seja indicado ao Oscar?
Até que sejam estabelecidas normas com relação ao uso de IA (inclusive, definindo o que é IA), estamos numa zona cinzenta entre o certo e o errado.
Por sinal, “Emilia Pérez” também usou IA para melhorar a voz de Gascon em algumas músicas, mas isto é um problema pequeno diante de todo aquele caos.
E a Demi Moore? Está rindo à toa com esse rolo todo, né?
Sim e não. Desencavaram um vídeo dela, de 1982, em que ela beija um menor de idade na boca. Um menino de 15 anos.
Ela não se manifestou a respeito.
Então de plena só tem a “Anora”?
Mais ou menos. Mikey Madison disse que dispensou coordenador de intimidade para fazer as cenas de sexo porque confiava em Sean Baker, o diretor de “Anora”. O coordenador ou coordenadora de intimidade é um profissional que, desde o movimento MeToo, se tornou praticamente obrigatório em grandes produções envolvendo sexo ou nudez.
É esse profissional que se certifica de que ninguém está sendo coagido a fazer algo que não quer fazer e que os limites de cada um estão sendo respeitados. O caso que melhor exemplifica a necessidade de alguém assim é o de “O Último Tango em Paris”, em que a atriz Maria Schneider é literalmente estuprada por Marlon Brando – tudo porque o diretor, Bernardo Bertolucci, queria que ela reagisse com surpresa.
Há atores e atrizes que se dizem contra a presença do coordenador de intimidade porque isto tiraria a “espontaneidade” das cenas, mas a ideia é justamente esta: garantir que todos estão seguros e que nada de “surpreendente” irá ocorrer.
É ótimo que Madison tenha se sentido segura com o diretor, mas a fala dela também pode ser interpretada como se a segurança no set fosse uma mera questão de confiança, de forma que exigir um coordenador de intimidade seria como uma ofensa ao caráter do diretor. E se for mesmo encarado como uma ofensa, como uma atriz de menor destaque pode se proteger sem pisar nos calos de alguém muito mais poderoso?
Não é um problema grave como os tweets de Gascon, mas apenas um assunto sério a ser discutido pela indústria.
Tá, mais algum problema? Mais algum rolo?
Tem a boa e velha “fraude de categoria”, uma prática já relativamente velha. Há quem considere Zoe Saldaña como a protagonista de “Emilia Pérez”, apesar de concorrer como coadjuvante (porque há mais chance de vitória nesta categoria).
Vale o mesmo para Kieran Culkin em “A Verdadeira Dor”, que também pode ser encarado como um “co-protagonista” de Jesse Eisenberg e não um coadjuvante.
Mas isto já não levanta muitas sobrancelhas em Hollywood (o botox também não permite).