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Em “Senna”, o piloto nunca é um homem. Ele é um mito. No anseio nostálgico pela simplicidade, só aceitamos heróis unidimensionais.
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No domingo, as arquiinimigas Rede Globo e SBT se uniram para transmitir uma homenagem a Silvio Santos no palco de Luciano Huck. Patrícia Abravanel foi a grande convidada e, usando um questionável vestido dourado, aproveitou para lançar aviões de dinheiro à plateia do programa.

A filha do apresentador, falecido em agosto deste ano, foi alvo de um fatídico sequestro em 2001 – acontecimento que é tema do horroroso “Silvio”, filme com Rodrigo Faro no papel principal. Desde “Bohemian Rhapsody” (também pavoroso), há uma febre de cinebiografias no cinema. E o Brasil não escapou da moda.

Mussum, Claudinho e Bochecha, Mamonas Assassinas, Gal Costa, Adoniran Barbosa… Todos tiveram as suas carreiras recontadas. Mas o caso mais emblemático de 2024 é, muito provavelmente, a minissérie “Senna”, um sucesso de público da Netflix.

Digo “de público” porque a crítica (me inclua neste grupo) não ficou tão comovida. Uma parcela considerável de brasileiros cresceu assistindo à Fórmula 1 ao lado da família (me inclua também neste grupo), mas a megaprodução insiste em canonizar o piloto.

Com enorme influência da família Senna, a minissérie foi feita não com um intuito artístico de representar a vida de um dos maiores ícones do país, mas como uma manutenção de marca. Um comercial do Instituto Ayrton Senna.

Para além do marketing, “Senna” também representa dois sintomas culturais. O primeiro é a necessidade de rever ou reviver momentos marcantes da infância, o que é compreensível. Em comparação com as dificuldades da vida adulta, a infância sempre irá parecer mais ensolarada.

A nostalgia é um sentimento capcioso. Não é o mundo que “ficou chato”, mas nós que crescemos e ganhamos responsabilidades. E agora também temos acesso a certas informações que podem macular essas memórias tão puras e preciosas. Lidar com o contraditório é algo que os adultos têm de fazer. Só as crianças podem tapar os ouvidos.

O que me leva ao segundo sintoma cultural. As cinebiografias brasileiras têm um puxasaquismo mais acentuado do que as internacionais. Por um receio de desagradar familiares, claro, mas também para satisfazer um público que não quer encarar os seus ídolos como seres humanos falíveis.

Não estou me referindo à prática batida de “separar o artista da obra”. Para desvincular a imagem pública da figura particular, é preciso primeiro admitir que há uma diferença significativa entre as duas. E não chegamos nem mesmo neste estágio de abstração.

Em “Senna”, o piloto nunca é um homem. Ele é um mito, um símbolo, um deus. Nesse anseio nostálgico pela simplicidade, os brasileiros só aceitam heróis unidimensionais. Qualquer insinuação mínima que possa ser interpretada como uma ofensa causaria um motim.

Também em “Silvio”, o apresentador é retratado como um homem simples, um milionário de pijamas que até frita um bife para o seu sequestrador. Numa espécie de sacrifício cristão de oferecer a outra face, ele se mostra muito preocupado em ouvir e acolher o jovem desafortunado. Quanta benevolência!

Fernando Dutra Pinto se rendeu à polícia depois que a sua integridade física foi assegurada pelo magnata. Morreu quatro meses depois de ser preso, aos 22 anos. Fora espancado com barras de ferro por agentes penitenciários e acabou sucumbindo à infecção generalizada. Isto, no entanto, não foi abordado no filme.

Em nosso país, certas figuras não merecem críticas nem reflexão, mas apenas homenagens vazias como a do programa de Luciano Huck – com uma montagem de momentos memoráveis no fundo e elogios grandiloquentes. E ai de quem contestar ou apontar defeito.

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