Nesta semana, o CEO da Apple apresentou um comercial do novo iPad e recebeu um turbilhão de comentários negativos. No vídeo, vemos uma série de objetos – como uma máquina de fliperama, um piano, latas de tinta, livros etc – sendo esmagados por uma prensa hidráulica gigante. A destruição é mostrada nos mínimos detalhes, ao som de uma música romântica que entoa “tudo o que eu preciso é você”. Quando a prensa reabre, o novo iPad é revelado. Mais fino, mais potente.
A mensagem é óbvia. Um mundo de possibilidades num gadget tão fininho. Mas o simbolismo da destruição não passou desapercebido. Apesar de vivermos em tempos de profundo analfabetismo midiático, a metáfora foi forte demais. Para aqueles que cresceram com a promessa de um futuro tecnológico, com todo o conhecimento do mundo na ponta dos dedos, o século 21 tem sido decepcionante.
Um repórter do Wall Street Journal, publicação que nem sempre é das mais humanistas, ficou admirado com a reação ao vídeo. Disse que fazia tempo que não via uma revolta tão visceral: “A propaganda sintetiza perfeitamente a sensação das pessoas de que a tecnologia está matando tudo o que já nos causou algum prazer. E para depois apresentar isso como uma coisa boa”.
Fora os preços, não há nada de errado com os produtos da Apple. Eu mesma estou digitando num MacBook Air M1, modelo de 2020, que parcelei em sei lá quantas vezes. Larguei o Windows ainda na faculdade, quando percebi que era mais fácil editar vídeos (e não travar) no Final Cut do que no Adobe Premiere. E nunca mais voltei. Veja bem, não há nada de errado com a tecnologia em si, mas na forma com que certos humanos – em geral, os mais endinheirados – enxergam a tecnologia.
Uma das reivindicações dos roteiristas e atores que paralisaram Hollywood por meses a fio foi a adoção de algumas medidas contra a ameaça da inteligência artificial. Antes mesmo da greve, a Disney já vinha escaneando atores para replicá-los sem qualquer tipo de autorização ou pagamento. E não eram atores com salários milionários, mas os coitados dos figurantes, aqueles que têm de complementar a renda dirigindo Uber.
No ano passado, o substituto de Steve Jobs recebeu uma compensação de US$63 milhões. David Zaslav, que lançou a moda de descartar filmes completos para abater os impostos da antiga HBO Max, recebeu US$49 milhões. Para bilionários como eles, a dedicação e o esforço de milhares de pessoas são como objetos a serem moídos e vendidos como sucata.
Dos nossos dados às nossas experiências mais íntimas, tudo é transformado em produto. Ontem, foi noticiado que a OpenAI destruiu um banco de dados com mais de 100 mil livros utilizados para treinar o ChatGPT – de novo, sem autorização ou pagamento. Infelizmente, o meio da tecnologia foi tomado por vândalos, roubando e esmagando tudo o que nos torna humanos.
De acordo com pesquisadores, cada cinco prompts no ChatGPT equivalem a uma garrafa de 500ml de água sendo despejada no chão. Entre 2021 e 2022, o centro de dados da Microsoft consumiu quase 6 bilhões de litros de água (mais de 2500 piscinas de tamanho olímpico). E para quê? Para roubar o trabalho alheio e regurgitar coisas sem sentido, cometer erros bizarros.
O comercial da Apple é apenas uma pequena amostra deste pesadelo em que nos meteram – uma distopia em que os techbros (muito deles alinhados ao fascismo, como Elon Musk) fazem o que bem entendem. E nós, que somos meros consumidores de nós mesmos, vemos a vida ficar mais difícil e cinza. Cinza, não. “Preto-espacial”.