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Na fantasia dos bilionários, a inteligência artificial é o funcionário dos sonhos – incansável, não exige salário e nem desafia ordens.
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No primeiro semestre de qualquer faculdade de comunicação, aprendemos que o emissor é aquele que transmite uma mensagem ao receptor – neste caso, eu estou tentando transmitir uma ideia a você, leitor. Quando alguém faz uma pergunta à inteligência artificial, no entanto, é o lado humano desta transação que constrói um significado por conta própria, partindo da interpretação de uma resposta gerada meramente por cálculos matemáticos.

Em um artigo de 2021, a linguista Emily M. Blender já falava dos perigos de um chatbot como o ChatGPT:

“Texto gerado por um modelo de linguagem não é baseado numa intenção comunicativa[…] Não poderia ser porque o material de treinamento nunca incluiu compartilhar pensamentos com um ouvinte, e nem a máquina teria habilidade para tal[…] Precisamos levar em conta que a nossa percepção da linguagem de texto natural, independente de como foi gerado, é mediada pela nossa própria competência linguística e predisposição a interpretar atos comunicativos como se exprimissem significado e intenção coerentes, mesmo quando não o fazem. O problema é que, se um lado da comunicação não possui significado, então a compreensão de um significado implícito é uma ilusão nascida de nossa singular compreensão humana da linguagem (independente do modelo).”

Apesar do nome, a “inteligência artificial” não é inteligente de fato. Ela não “entende” o que estamos falando, mas acessa (com uma velocidade impressionante, é verdade) um gigantesco banco de dados roubados para nos dar a ilusão de um diálogo – reproduzindo aquilo que, conforme a sua programação, tiver a maior probabilidade de parecer adequado naquele momento específico.

Poderíamos argumentar que a “intenção comunicativa” da IA está naquele que é o dono dela, como quando o Grok de Elon Musk começou a disparar teorias da conspiração de extrema direita. Quando a Alexa me deseja um bom dia, contudo, ela não está preocupada comigo ou com o meu dia. E muito menos o Jeff Bezos – eu não fui sequer convidada ao casamento.

“Mas não é assim que o cérebro humano funciona? Em nossas interações sociais, nós também não acessamos um ‘banco de dados’ composto pelas nossas memórias em busca de uma resposta apropriada?” Se você é um alienígena que desconhece a natureza humana, sim.

Ainda que nem todos o exerçam, nós somos dotados de pensamento crítico. Meus pais me ensinaram que devo cumprimentar aos outros quando entro no elevador do prédio. Se o meu vizinho é um estorvo, contudo, posso exercer o meu julgamento e ignorá-lo. E mesmo sendo uma anta, meu vizinho pode interpretar este “ato comunicativo” como um protesto, mesmo que silencioso.

Mudamos de ideia por vontade própria e não só quando recebemos uma nova diretriz de um programador misterioso. Na fantasia dos bilionários, a inteligência artificial é o funcionário dos sonhos – incansável, não exige melhores condições de trabalho e nem desafia ordens.

A IA não tem capacidade de interpretar um comando qualquer como cruel, antiético ou criminoso – a não ser que ela seja treinada para tal. Se ela possuísse algum senso inato de justiça, ela mesma já teria cometido o suicídio, dada a infinidade de problemas muito bem documentados em torno do uso desta tecnologia.

Veja, eu consigo criar a imagem mental de um robô que se mata, ainda que ele nunca tenha vivido, porque eu, como humana, atribuo essa qualidade a ele. O trabalho é todo meu. Do meu cérebro.

Nós, humanos, nascemos poetas. Condensamos uma miríade de significados em uma única imagem, em um único som, mesmo quando não há nada ali. Se interpretamos os movimentos do mercado financeiro ou os possíveis conselhos de uma carta de tarot, é por um esforço criativo e não somando dois mais dois.

Recentemente, vi um vídeo sobre a história de uma fotografia viral. A capa do vídeo mostrava uma foto antiga, em preto e branco, de duas crianças e duas mulheres. No canto da imagem, havia um vulto escuro dependurado, como um espírito malévolo que invade uma ocasião alegre.

É provável que você já tenha visto a foto antes. Ela circula pela internet, em fóruns e sites dedicados ao paranormal, há décadas. Todo o mistério em torno dela se dava porque ninguém sabia determinar como foi criada. Não havia sinais de manipulação digital e as luzes também não condiziam com a prática analógica da dupla exposição, utilizada em fotos fantasmagóricas desde o século 19.

O autor do vídeo, portanto, fez uma longa investigação, um verdadeiro processo arqueológico, e conseguiu, enfim, encontrar o criador. Deixo a explicação da técnica para quem assistir ao vídeo. Não quero estragar a graça da descoberta. O que me comoveu foi o motivo por trás da imagem e como as pessoas foram criando as suas próprias interpretações ao longo dos anos.

Quando Reagan foi eleito presidente dos Estados Unidos, o artista visual Richard G. Ramsdell utilizou uma foto de sua própria infância (ele é uma das crianças na imagem) em uma série de trabalhos. O vulto representaria o lado sinistro do modo de vida americano, a iminência de uma catástrofe que os presentes parecem ignorar.

Removida do contexto original, a fotografia foi apresentada por anônimos como uma evidência da vida após a morte. Com os anos, passou a ser conhecida como “a foto da família Cooper” – uma família que teria acabado de se mudar para uma nova casa e que foi surpreendida quando o rolo fotográfico da celebração foi revelado.

Talvez, a série “Twin Peaks” tenha influenciado na escolha do sobrenome, já que a foto brotou na internet nos anos 2000. “Cooper” é relacionado também a outra figura misteriosa, o responsável por um assalto em alturas no início da década de 1970 e jamais capturado. Os crimes sem solução e o sobrenatural sempre foram campos de interesse muito próximos.

Quando um artista cria uma obra, ele convida aos demais a criarem as suas próprias interpretações – David Lynch, inclusive, fazia questão de não explicar as suas decisões criativas para conceder, muito gentilmente, essa liberdade ao seu receptor.

Mas como Ramsdell deve ter se sentido vendo a sua obra utilizada como algo tão distante de seu propósito original? E por que a descoberta da verdadeira história por trás da fotografia nos parece como uma vitória? Um final feliz? Porque ela não foi criada por uma máquina desprovida de intenção.

Como sociedade, estamos depositando o nosso tempo e a nossa admiração nos lugares errados. Os dados roubados pelos CEOs de tecnologia são muito mais interessantes do que o produto que eles querem nos vender.

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