Às vésperas da estreia de “Thunderbolts”, as redes sociais foram tomadas por elogios – “a Marvel está de volta!”, “diferente de todos os outros filmes da Marvel!” e outros comentários menos efusivos. Há meses, Florence Pugh declara que a megaprodução tem uma “vibe” mais independente; trailers ressaltam a contribuição de profissionais da grife A24.
O último da Marvel que eu assisti foi “Multiverso da Loucura”, do Sam Raimi. Atraída pelo estilo particular do criador de “Evil Dead”, me deparei com duas forças opostas em tela: um cineasta lutando para criar algo minimamente interessante, e um estúdio utilizando todo o poder da manopla de Thanos para cortar as suas asinhas. Desisti ali e não voltei mais.
É evidente que, há anos, a estratégia da Marvel tem sido contratar artistas celebrados (muitos recém saídos de produções independentes mesmo) para dizer à imprensa que “agora sim, fizemos um filme bom”. Desta forma, figuras premiadas como Taika Waititi ou Chloé Zhao emprestam sua credibilidade em troca de um caminhão de dinheiro. Nada contra, a fortuna tem lá suas vantagens.
Uma das minhas anedotas favoritas envolve a tentativa da Marvel de contratar a argentina Lucrecia Martel para dirigir “Viúva Negra”, a primeira grande produção da franquia liderada por uma mulher. Só que, pelo contrato, não queriam que ela dirigisse as cenas de ação; ou seja, queriam a sua assinatura, a sua marca, não o seu ponto de vista.
Negócios são transacionais por definição, mas o que difere a Marvel dos demais é um gigantesco aparato em que o artista é visto como um incômodo – ainda que temporário. O plano é criar um poderoso computador em que os executivos possam digitar “Dr. Estranho no estilo de Sam Raimi” e, assim, gerar um produto customizável. Sem que tenham de lidar com Sam Raimi e muito menos pagá-lo.
Infelizmente, acho que muitos nerds também adorariam algo assim – forçar os seus artistas favoritos a obedecerem os seus próprios comandos, como em “Louca Obsessão”. A princípio, pode até ser curioso, mas amamos as obras que amamos (inclua aí músicas, quadrinhos, videogames, animações do Studio Ghibli etc.) porque os criadores executaram as próprias ideias, não as nossas.
Para garantir com que tudo seja um tédio absoluto, basta submeter toda obra de arte à pesquisa de satisfação. O cinema caminha na corda-bamba entre a arte e o comércio. Os estúdios fazem, sim, exibições testes com o intuito de colher as sugestões dos espectadores, mas cabe ao artista, quando a sua voz é respeitada, defender a integridade de sua visão.
Foi o que Ryan Coogler fez com “Pecadores”. Depois de “Pantera Negra” e “Wakanda Forever”, ele utilizou o seu currículo para atrair um investimento considerável e criar algo pessoal. Não acredito que todo artista tenha de proporcionar uma bilheteria bilionária à Disney, como se pagasse um pedágio, antes de ter direito à liberdade artística, mas foi como aconteceu.
A Marvel, é claro, não descobriu Coogler. O diretor já chamava a atenção com produções mais modestas. O modus operandi dela é justamente este – sugar o hype de novos artistas, mas intimidá-los com toda a sua hierarquia. Com “Pantera Negra”, ele foi escolhido como um sacrifício às engrenagens da Disney, mas sobreviveu para contar a história.
Apesar de ter cumprido com todas as suas obrigações (lidando, inclusive, com a perda inesperada do ator Chadwick Boseman), a Marvel ainda é uma pedra no sapato do cineasta. Para a tristeza de Hollywood, que não queria ver Coogler se dando bem, “Pecadores” superou todas as expectativas. E, no entanto, o filme teve de ceder lugar para “Thunderbolts”.
Não estamos falando da lei da oferta e da procura. É que, assim como a Disney oprime jovens talentos, ela também manda e desmanda em toda a cadeia de distribuição dos filmes. Se uma rede de cinemas não oferece uma porcentagem específica de salas aos lançamentos da Disney, o conglomerado ameaça romper relações.
Mesmo que milhares ainda queiram ver “Pecadores”, os cinemas são obrigados a reduzir a quantidade de sessões, ou mesmo retirar o filme da programação. Nos Estados Unidos, “Thunderbolts” chegou a ocupar quase todas as salas de um multiplex com dezessete telas. As sessões não estão cheias – é só para eliminar a competição e, ainda que artificialmente, dominar a bilheteria.
Quando Martin Scorsese critica a Marvel, não é por odiar os quadrinhos ou por não ir com a cara do Homem de Ferro, mas porque o estúdio faz parte de uma máfia – e de máfia, ele entende. Se o sistema sofre intimidação da Disney, e falta espaço para a diversidade, para os originais ou os independentes de verdade, é difícil não olhar um pôster de “Thunderbolts” com cinismo.