Apesar das comparações com “Crash – Estranhos Prazeres”, do canadense David Cronenberg, “Titane” é uma experiência sui generis. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2021, o filme não deve ser explicado, mas vivenciado. Cabe ao espectador buscar um sentido íntimo, como se refletisse o significado de um pesadelo vívido.
A diretora Julia Ducournau já havia se dedicado ao chamado “terror corporal”, tanto no curta-metragem “Junior” (também disponível na Mubi) como no seu elogiado longa de estreia, “Raw”. Para a francesa, as mudanças impostas ao corpo feminino, seja a puberdade ou uma gravidez indesejada, são como metamorfoses monstruosas.
Em “Titane”, viver em uma prisão de carne e osso não é a nossa única maldição, mas também os papéis sociais atrelados à identidade de gênero. A novata Agathe Rousselle interpreta Alexa, uma dançarina com fetiche por carros desde que sofreu um acidente na infância e precisou colocar uma placa de titânio na cabeça.
Uma noite, no estacionamento vazio do seu trabalho, ela é abusada por um fã e acaba matando o homem com um palito de prender cabelo espetado em seu ouvido. Depois de esconder o corpo, ela percebe que está suja com a baba da vítima (mais uma vez, o horror do orgânico) e retorna ao vestiário para se lavar – é aí, então, que Alexa é seduzida por um carro.
A cena de sexo com o carro pode ser encarada como uma forma de dissociação não apenas do assassinato, mas de tudo que a torna humana – se tornar, enfim, uma máquina. Sem humanidade, ela acaba cedendo aos seus impulsos mais violentos. E, para se esconder da polícia, ela decide se passar por Adrien, filho desaparecido do bombeiro Vincent (Vincent Lindon).
Para viver como Adrien, ela corta os cabelos, comprime os peitos com ataduras e quebra o próprio nariz na beirada de uma pia. É um processo violento, uma transformação que parece convencer apenas Vincent, tão ansioso pelo retorno do filho. Vincent também sofre em sua própria prisão, injetando anabolizantes para amenizar os impactos da idade.
Sem saber quando o seu disfarce será descoberto (afinal, ela está grávida do carro e a sua barriga aumenta rapidamente), Alexa/Adrien vive o dia a dia com Vincent. O que se segue é uma meditação sobre trauma, identidade, gênero e amor. Dirigido com maestria por Ducournau e com duas das performances mais corajosas do ano, “Titane” é inesquecível.