“Tomara que seja um menino. O mundo é muito cruel com meninas”, diz Elizabeth Moss na pele da escritora Shirley Jackson ao acariciar a barriga de uma grávida. Ridicularizada pelos colegas de profissão, maltratada pelo marido infiel e atormentada pela própria doença mental, Jackson convivia com os espíritos malignos que habitam a sua obra. “A Assombração da Casa da Colina”, terror gótico publicado em 1959, influenciaria dezenas de peças, filmes e, mais recentemente, uma série da Netflix (“A Maldição de Hill House”).
Dirigido por Josephine Decker, “Shirley” desafia o conceito de cinebiografia. Baseado no romance de Susan Scarf Merrell, com roteiro adaptado por Sarah Gubbins, o filme não é fiel à vida de Jackson (seus filhos, por exemplo, não existem), mas a diretora retrata a complexidade do seu processo criativo e do imaginário sombrio que inspirou a sua escrita. Neste sentido, “Shirley” é uma cinebiografia mais consistente do que, digamos, “Bohemian Rhapsody”, que também distorce a vida de Freddie Mercury, mas não oferece o mesmo insight sobre a sua arte.
Passado em 1948, logo após a publicação do conto “A Loteria” na revista New Yorker, um jovem casal se muda para a casa de Jackson, em Vermont. Fred (Logan Lerman) é contratado para ser o mais novo assistente do professor e crítico literário Stanley Hyman (Michael Stuhlbarg), o marido de Shirley. Fred é recém-casado com Rose (Odessa Young), uma moça inteligente e submissa que acaba aceitando a tarefa de cuidar da casa e preparar as refeições, pois Shirley mal consegue sair da cama – a escritora sofria de ansiedade generalizada e agorafobia.
“Shirley” é como um terror gótico escrito pela própria Jackson, um sensual conto de fadas em que uma bela jovem é enganada por dois homens maus e forçada a se tornar a escrava de uma terrível bruxa. Nesta versão, contudo, a bruxa é também a única amiga da mocinha. Unidas pela frustração da vida doméstica, Rose inspira o trabalho de Shirley, um romance sobre uma universitária desaparecida. Até o livro ser concluído, no entanto, a colaboração criativa irá provocar danos irreparáveis em, pelo menos, uma delas.
Com produção executiva de Martin Scorsese, que agradeceu à diretora por ajudar a expandir a linguagem do cinema, “Shirley” conta com close-ups intimistas, feitos com câmera na mão, que ditam o tom subjetivo e onírico da trama. Não é a primeira vez que Decker discute o processo criativo de um autor. Assim como “A Madeline de Madeline” (2018), “Shirley” reflete os limites entre um artista e a sua musa inspiradora – e o que acontece quando esta fronteira é cruzada.
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Nos Estados Unidos, ou para quem usa VPN, “Shirley” está disponível sob demanda e na plataforma de streaming do Hulu. Para quem está no Brasil, há outros métodos não recomendáveis.