É raro encontrar uma tradução tão perfeita de um título de filme como “Puro-Sangue”. Em inglês, o termo “thoroughbred” se refere à raça premiada de cavalos e também denota uma boa criação, como a das protagonistas do subúrbio afluente de Connecticut. Em português, “puro-sangue” carrega todos estas conotações e adiciona mais uma: a sanguinolência. Um dos melhores filmes de 2018, “Puro-Sangue” já começa com a equação garota + cavalo + faca. Ainda que a ação ocorra em off, o resultado é fácil de calcular.
Olivia Cooke e Anya Taylor-Joy interpretam Amanda e Lily, duas adolescentes ricas, mas bastante diferentes uma da outra. Lily é uma patricinha de colégio interno, muito preocupada com as aparências; já Amanda não se importa com qualquer convenção social. Depois do episódio com o cavalo e a faca, seus médicos não conseguem decidir se ela tem transtorno de personalidade borderline ou se ela é antissocial com tendência esquizoide. Em resumo, Amanda é apática e brutalmente honesta.
Desde o começo, a tensão nasce da dicotomia entre as personagens. Cansada de performar normalidade, Amanda desmascara as falsas gentilezas de Lily – que, por sua vez, começa a ver vantagem numa amizade desprovida de moralismos. Sempre que se encontram, elas se desafiam. Quem consegue chorar de forma mais convincente? Quem aguenta mais tempo debaixo d’água? A fronteira final é uma questão de ética, a maior de todas: quem seria capaz de matar?
O alvo é o padrasto de Lily, um babaca louco por fitness e demonstrações desnecessárias de virilidade. O filme é excelente ao retratá-lo como um ser desprezível, é impossível não odiá-lo – mas o desdém é motivo suficiente para cometer assassinato? Dirigido pelo estreante Cory Finley, que também assina o roteiro, “Puro-Sangue” é preciso e delicioso como um suspense de Alfred Hitchcock, mas ao centralizar a trama no universo de duas adolescentes, o longa se torna mais fresco e original.
Para dar cabo do padrasto sem levantar suspeitas, Lily e Amanda vão precisar da ajuda do traficante Tim, interpretado por Anton Yelchin (“Puro-Sangue” é dedicado à memória do ator que morreu em um acidente bizarro em 2016, quando tinha apenas 26 anos). Em contraste com a frieza de Amanda e a superficialidade de Lily, Tim é provavelmente a figura mais simpática do filme, pois cabe ao pária social trazer uma sensação de deslumbramento em meio à opulência do estilo de vida das garotas.
Com trilha sonora de Erik Friedlander, que lembra o trabalho de Johnny Greenwood em colaborações com Paul Thomas Anderson, e a fotografia sofisticada de Lyle Vincent, “Puro-Sangue” impressiona pela técnica afiada em todos os seus departamentos, dos diálogos do roteiro até a edição de som – mas, em especial, nas perfomances de Cooke e Taylor-Joy. No centro da narrativa, há a noção de que todos nós tentamos nos passar por “normais”, mas só alguns realmente convencem.