Se inscreva no canal do Telegram
Pesquisar
Close this search box.

Ripley e as diferentes versões de um farsante

Baseada na obra de Patricia Highsmith, nova minissérie da Netflix mostra que não há versão definitiva de Tom Ripley.
Compartilhe:

Para receber todas as novidades, se inscreva no canal do Telegram

Tom Ripley já foi interpretado por Alain Delon, Dennis Hopper, Matt Damon, John Malkovich, Barry Pepper e – mais recentemente – Andrew Scott, premiado ator irlandês que é mais conhecido no Brasil como o “padre gato” de “Fleabag”. Quem poderia imaginar atores tão díspares (tanto de estilo como de aparência) interpretando um mesmo personagem?

O farsante criado pela escritora Patricia Highsmith é um homem em busca de uma identidade – mas pode ser também um passaporte. Um exímio imitador e estelionatário, Ripley está disposto a matar para não ter de ser ele mesmo – e, talvez por isso, suas feições sejam tão maleáveis em nosso imaginário.

 

Alain Delon, Dennis Hopper, Matt Damon e John Malkovich. Imagens de divulgação.

 

Highsmith nasceu no Texas, em 1921. Com uma relação de amor e ódio com a própria mãe, seus diários revelam que, aos 8 anos, ela sonhava em assassinar o seu padrasto. Também na infância, ela já tinha certeza que era homossexual – e, entre períodos depressivos, aprendeu a conviver com a culpa que sentia pelas suas fantasias de violência e sexo.

Em 1954, um ano antes de publicar “O Talentoso Sr. Ripley”, Highsmith escreveu:

“Com relação à relutância de minhas parceiras escolhidas, e minha subsequente falta de autoestima, acredito que esta autodepreciação se deve aos meus pensamentos malvados, como o assassinato de meu padrasto, por exemplo, quanto eu tinha 8 anos ou menos. E também à percepção do tabu da homossexualidade, mesmo aos 6 ou 8 anos, eu não me atrevia a confessar o meu amor, e é claro que isto persistiu com suas ramificações adultas da vida social, a culpa. Infelizmente, isto é tão introjetado, porque de forma consciente eu não tenho a menor vergonha da homossexualidade, e se eu fosse normal, e igualmente imaginativa, é provável que eu acharia muito interessante ser homossexual, e desejaria ter a experiência.”

Para uma autora mergulhada em sentimentos de culpa e que especulava como seria caso “fosse normal”, um personagem capaz de abandonar os seus problemas e de viver como outra pessoa é como um sonho (um sonho sanguinário, mas um sonho). Highsmith, afinal, não era assumida, tanto que publicou o romance “O Preço do Sal” (que se tornaria o filme “Carol”, romance sáfico de 2015 com Cate Blanchett e Rooney Mara), sob o pseudônimo Claire Morgan.

Assinando o próprio nome, Highsmith caracterizou Ripley como alguém sem interesse por sexo, que sentia atração tanto por homens como por mulheres, mas que optou por desistir dos dois. O diretor Anthony Minghella, no entanto, evidenciou o que só poderia ser sugerido na década de 1950 com a sua adaptação de 1999, encabeçada por Matt Damon.

Nela, Ripley (Damon) é um pobre coitado que não se encaixa em lugar algum e que não se apaixona só por Dickie Greenleaf (Jude Law), mas pelo seu jeito de encarar a vida sem fazer concessões. Greenleaf é incapaz de sentir culpa – ao contrário de Highsmith e de qualquer um que, diante da sociedade, não é considerado “normal”.

Essa angústia por pertencer e ser amado desaparece na nova minissérie “Ripley”, disponível por completo na Netflix. Embora tenha sido considerada bastante fiel ao livro, o ator Andrew Scott é algumas décadas mais velho do que o personagem original – o que pode explicar a abordagem mais fria e distante do diretor Steve Zaillian, ganhador do Oscar pelo roteiro de “A Lista de Schindler”.

Com uma fotografia monocromática e de alto contraste, “Ripley” é como um filme noir que se estende por oito episódios (vez ou outra, de maneira autoindulgente). Nesta versão, o protagonista não tem a menor vergonha de ser quem ele é – um golpista e nem tão talentoso assim.

A estética pessimista do noir, aliada às pinturas barrocas de Caravaggio, casa muito bem com um contexto em que até a ensolarada Itália parece inóspita. Quantas escadas! Quanta burocracia! E o sangue? O sangue é um inferno para limpar! Sem berrar a moral de que o crime não compensa, o diretor cria um suspense em que, sempre que o protagonista começa a baixar a guarda, surge mais uma ameaça, mais um lance de escadas, mais uma mancha…

Por me identificar com personagens deslocados, ainda prefiro a versão de Minghella, mas a variedade de atores capazes de interpretar Tom Ripley já denota a sua versatilidade. Não há uma forma correta de adaptar a obra de Highsmith, mas apenas reinventá-la – com outras roupas, outros documentos, numa cidade diferente.

Tags:

Leia também:

Suspense eficaz com Sarah Paulson tem pé firme na realidade.
Baseado em livro de Iain Reid, Charlie Kaufman assina o roteiro e a direção de nova produção da Netflix.
Fora a moda da década de 1980, o mais assustador em “Mansão Bly” é ter de encarar mais um episódio.
Kate Winslet encabeça minissérie de suspense da HBO.