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O matrimônio e a maternidade no universo sem romantismo de "A Casa do Dragão".
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Em nosso imaginário, a fantasia medieval era povoada por cavaleiros que obedeciam a um código de honra e que, muitas vezes, resgatavam donzelas em perigo. Já em 1605, é claro, Miguel de Cervantes parodiava romances de cavalaria com “Dom Quixote”. Foi o ciclo Arturiano, no entanto, que dominou o cinema do século XX, com o seu ideal cavaleiresco e a noção de amor cortês.

Não existe amor cortês em “Game of Thrones”. Assim como São Paulo, os bares estão cheios de almas tão vazias. A ganância vibra, a vaidade excita. No universo de George R. R. Martin, o casamento é visto como uma transação econômica. Se “Sopranos” serviu para derrubar o mito do poderoso chefão, a adaptação de “GoT” escancarou a Idade Média (mesmo a de mentirinha) como um período sem romantismo.

Já no primeiro episódio de “A Casa do Dragão”, que volta ao Max nesta semana, há uma cena brutal que desencadeou dúzias de artigos condenando a violência da série. A produtora Sara Hess tinha dito que o prelúdio de “GoT” não teria cenas de estupro como a que envolveu Sansa Stark, mas ela não prometeu nada com relação à violência obstetrícia. Ou seja, mulheres ainda seriam vítimas de um sistema patriarcal.

No portal feminista Jezebel, Kylie Cheung escreveu:

“A violenta cena do parto forçado foi frustrante de se ver em nosso contexto político e cultural do pós-Roe v. Wade. O parto forçado, as complicações de uma gravidez sem assistência médica, e a priorização de uma vida hipotética no lugar da saúde e da segurança da pessoa grávida podem não ser a mesma coisa que uma cena tradicional de estupro, mas têm um efeito tão traumático quanto para quem os vê – ainda mais agora.”

No Brasil, centenas de pessoas foram às ruas para protestar o Projeto de Lei 1904, conhecido como “PL do Estuprador”, que penaliza a mulher estuprada que realizar um aborto. Parece que, da Idade Média até o século XXI, a mulher ainda é vista não como um indivíduo livre, mas como um animal cujo único valor é parir e multiplicar. Com sorte, nasce um herdeiro varão.

Assim, “A Casa do Dragão” não poderia vir em melhor hora. Ainda que seja duro de assistir, a série se concentra na dinâmica de duas mulheres. Interpretada por Olivia Cooke, Alicent se conformou com o seu papel na sociedade, vivendo em função do pai, do marido e do filho. Por sua vez, Rhaenyra (Emma D’Arcy) escolheu trilhar o próprio caminho, mesmo protagonizando os maiores escândalos da corte.

Obedecendo ao estilo HBO, “A Casa do Dragão” retrata a maioria dos personagens com uma certa complexidade. Dotada de uma sensibilidade mais moderna, Rhaenyra é obviamente a heroína, mas Alicent não é uma megera o tempo todo, ela tem qualidades. As duas, que antes eram melhores amigas (e com uma certa tensão homoerótica), se veem no meio de uma guerra de acidentes e mal-entendidos.

É o ressentimento de Alicent, por ter ido adiante com tudo o que uma sociedade patriarcal esperava dela, que torna as transgressões de Rhaenyra tão imperdoáveis. Como ela ousa viver como bem entende? Quando Alicent faz de tudo para colocar o próprio filho no trono, Rhaenys (Eve Best) diz a ela que “o seu desejo não é ser livre, mas construir uma janela na parede de sua prisão”.

Curiosamente, é a “devassa” Rhaenyra quem mais demonstra afeto aos filhos, beijando e incentivando Lucerys antes de uma missão importante. No mesmo episódio, Aegon pergunta à mãe se algum dia ela o amou. Alicent responde chamando o filho de imbecil. Quem diria que, mesmo em tempos medievais, impor o matrimônio e a maternidade às mulheres não as tornam mais felizes?

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