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Criada por Damon Lindelof, série da HBO honra o espírito original da HQ de Alan Moore.
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*sem spoilers*

No Rotten Tomatoes, a série “Watchmen” recebeu 96% de avaliações positivas da crítica especializada e conquistou apenas 50% dos usuários em geral. A discrepância não tem a ver com a qualidade da série em si, mas com os assuntos tratados por ela. “Mais um programa que mostra os supremacistas brancos como se fossem vilões”, comentou um dos usuários que deu meia estrela à série. “Eu queria gostar, mas não posso continuar assistindo quando sinto que estou sendo insultado e ofendido”, disse outro.

Inspirada pelos quadrinhos de Alan Moore e Dave Gibbons, a série produzida pela HBO e criada por Damon Lindelof (de “Lost” e “The Leftovers”) começa com um acontecimento verídico da história americana: o massacre racial de Tulsa, Oklahoma. Em 1921, membros da Ku Klux Klan atacaram um bairro conhecido como a “Wall Street negra”, uma das comunidades mais afluentes da época. Lançando bombas de um avião particular, destruíram 35 quarteirões e assassinaram entre 36 e 300 pessoas – hoje mesmo, quase 100 anos depois, pesquisadores encontraram vestígios de uma possível vala comum de vítimas do massacre.

Publicada em 1986, a HQ de “Watchmen” se passa em uma realidade alternativa em que Richard Nixon não renuncia ao cargo de presidente dos Estados Unidos e vence a guerra do Vietnã com o auxílio do Dr. Manhattan, um físico nuclear que sofre um acidente em seu laboratório e adquire habilidades sobre-humanas. Na série, após o massacre de Tulsa, avançamos para os tempos atuais: Robert Redford (sim, o ator de Hollywood) é o presidente americano que instaura compensações monetárias aos descendentes das vítimas de Oklahoma, chamadas de “redfordações”.

A agenda de esquerda do presidente Redford enfurece os membros da “Sétima Kavalaria”, a KKK de “Watchmen”, que arquitetam um plano mirabolante (revelado por completo apenas nos últimos episódios) para retomar o poder em todas as esferas e assegurar com que as minorias se curvem para as maiorias. Interpretada com maestria por Regina King, Angela Abar, também conhecida como a justiceira “Sister Night”, é uma detetive negra que acaba bem no epicentro dessa disputa racial que contamina a história americana há gerações.

Apesar da reação previsível dos racistas no Rotten Tomatoes, que também tentaram derrubar as avaliações de “Pantera Negra” e de “Os Últimos Jedi”, “Watchmen” atraiu cerca de 7 milhões de espectadores por episódio, se tornando a primeira temporada mais assistida de uma série original da HBO desde a estreia de “Big Little Lies”, em 2017. Com apenas nove episódios, a série foi considerada “incrível e indelével” pelo New York Times: “em uma única temporada, ‘Watchmen’ pegou a história e a mitologia pop dos Estados Unidos, desmantelou até os menores átomos e reconstruiu tudo de uma forma familiar, mas totalmente nova”.

Moore nunca deu a bênção para que adaptassem a sua história ao cinema ou à televisão, mas Lindelof parece ter se baseado em uma entrevista de 2016, em que o autor argumenta que os heróis de hoje em dia não cumprem mais a função de estimular o imaginário de meninos de 12 anos, mas de compensar a covardia de um público adulto: “esses personagens icônicos ainda são sonhos de uma raça superior. Na verdade, acho que podemos considerar ‘O Nascimento de Uma Nação’, de D.W. Griffith, como o primeiro filme americano de super-herói, o ponto de origem de todas essas capas e máscaras”.

Nesse sentido, a versão de Lindelof é muito mais fiel ao espírito original de “Watchmen” do que uma recriação quadro a quadro da HQ.

*com spoilers*

A partir daqui, escrevo para quem já assistiu toda a série. Então, estais avisados.

No terceiro episódio, a agente Laurie Blake (Jean Smart) conta uma longa piada em que os seus antigos parceiros são enviados ao inferno: Coruja, por ser muito molenga e não ter matado o suficiente; Adrien Veidt, por ser um monstro e ter matado em excesso; e Dr. Manhattan, por não se importar com um ou com o outro – afinal, uma pessoa viva tem a mesma quantidade de partículas de um cadáver. 

Uma das características mais marcantes do Dr. Manhattan é a sua passividade diante dos acontecimentos (“ele poderia ter feito muito mais”, diz Will Reeves) e é justamente por isso que ele se apaixona por Angela, porque ela tenta salvá-lo mesmo sabendo que não há como vencer. Os opostos, afinal, se atraem.

Em “Watchmen”, temos um mortal querendo ser deus (Veidt) e um deus querendo ser mortal (Manhattan). Veidt descobre que ser venerado e obedecido (mesmo quando tenta criar um arqui-inimigo e um tribunal de mentirinha para se divertir), é chato e frustrante. Manhattan percebe que a humanidade é valiosa porque lutamos contra inimigos mesmo quando eles não podem ser derrotados.

Ainda que os principais membros da Sétima Kavalaria tenham sido dizimados, o racismo ainda existe – mas vale a pena lutar contra ele, em vez de ir se esconder em Marte ou em alguma lua de Júpiter. Manhattan toma a decisão de transferir as suas habilidades para Angela porque, talvez, o poder deva ficar nas mãos de quem tenha algo em jogo.

Depois de vivenciar um século da raiva e do medo que o seu avô sentiu como o Justiceiro Encapuzado, depois de ter perdido os pais em um atentado terrorista no Vietnã e de ter sido chamada de “cadela preta” por um senador americano, Angela está mais do que apta a exercer o seu poder de forma que ela não vá parar no inferno.

A primeira temporada de “Watchmen” é a história de origem de um nova heroína, com um direito maior ao protagonismo do que todos os outros.

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