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A primeira profecia da Imaculada

Como dois filmes tão similares foram lançados no mesmo ano?
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Morto por esfolamento, São Bartolomeu é representado segurando a própria pele. Torturada pelos romanos, Santa Luzia carrega os seus olhos arrancados sobre uma bandeja dourada – Santa Ágata, por sua vez, exibe os seios extirpados. Na eucaristia, é claro, devoramos o corpo de Cristo e bebemos o seu sangue. O terror é indissociável do catolicismo e o catolicismo é indissociável do terror.

Já no cinema mudo, filmes como “Häxan” (1922) e “Fausto” (1926) retratavam o diabo como uma criatura chifruda e de unhas longas. Em 1931, quando Bela Lugosi fez “Drácula”, o vampiro fugia assustado quando avistava um crucifixo. E o que dizer, então, dos clássicos “O Bebê de Rosemary” (1968) ou “O Exorcista” (1973)? Há mais de um século que a iconografia católica assombra a sétima arte – e, julgando pelos lançamentos de 2024, não será exorcizada tão cedo.

Em “A Primeira Profecia” e “Imaculada”, a Igreja é uma instituição sinistra, repleta de freiras e padres tenebrosos (especialmente, freiras). Os dois filmes tratam de noviças que, prestes a proferir os votos perpétuos, vão morar em conventos italianos – e daí, conforme manda a tradição do terror, coisas estranhas começam a acontecer.

Dirigido por Arkasha Stevenson, de “Vingança Sabor Cereja”, “A Primeira Profecia” estreou nos cinemas brasileiros no início de abril. Com Sônia Braga como uma das freiras tenebrosas, o terror tem a atuação corajosa da inglesa Nell Tiger Free, conhecida por “Game of Thrones”, e algumas cenas boas. Surpreendentemente, conta também com uma deliciosa trilha sonora de discoteca italiana.

Já o roteiro é uma zona. Sem revelar muito da trama, a Igreja vive uma crise diante do espírito contestador da década de 1970, mas os religiosos têm um plano diabólico para fazer com que os infiéis voltem à missa de domingo. É um prelúdio de “A Profecia”, original de 1976 com Gregory Peck, mas não é necessário conhecer a franquia. Basta saber que tem a ver com o surgimento do Anticristo.

Já “Imaculada”, que estreia nos cinemas brasileiros neste feriado de Corpus Christi, tem a it-girl Sydney Sweeney como a noviça atormentada. Vivendo em um convento remoto, ela descobre uma gravidez e, por ser comprovadamente virgem, passa a ser tratada como um milagre ambulante – um milagre que ela nunca pediu. Não se preocupe, tudo isto está no trailer. Aliás, se você viu o trailer, você viu o filme praticamente inteiro.

Não há um único susto que não tenha saído de um filme melhor, ou mesmo de um curta bastante famoso no YouTube. Na maior parte do tempo, a personagem de Sweeney não tem personalidade alguma e vai aceitando tudo o que acontece sem protestar. É, talvez, nos vinte minutos finais que ela decide acordar para a vida. E, de fato, acaba encerrando “Imaculada” com chave de ouro, apesar do caminho tortuoso até lá.

Não é à toa que duas produções tão similares estejam sendo lançadas agora. Em 2022, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a constituição americana não confere o direito ao aborto, o que abriu uma brecha legal para que os estados abolissem a prática de forma independente. A despeito das pesquisas que apontam que 61% da população é favorável à legalidade do aborto, a influência religiosa sobre o tema é muito grande.

Desde então, tudo ficou mais difícil para as mulheres. Não só o acesso ao aborto seguro, mas também o acesso a contraceptivos comuns. As Big Techs já operam em conjunto com a Justiça para punir quem passa pelo procedimento. Pela falta de privacidade, mulheres começaram a apagar aplicativos que acompanhavam o ciclo menstrual. Há toda sorte de leis bizarras sendo propostas. E já vemos os efeitos disto também no Brasil.

Na onda satânica do final dos anos de 1960 aos anos de 1970, em filmes como “O Bebê de Rosemary”, “O Exorcista” e “A Profecia”, o que tínhamos a temer era o próprio Satanás (ou Pazuzu, no caso da obra de Friedkin) e os seus adoradores. No século XXI, a maior ameaça à nossa integridade física e espiritual são aqueles que se dizem cristãos. Ainda teremos muitas “Imaculadas” e “Primeiras Profecias” pela frente. Certo mesmo estava o Drácula.

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