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Barry e o método

Série de Bill Hader chega ao fim discutindo dramaturgia e a negação da realidade.
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Na brilhante série “The Other Two”, da HBO Max, Cary Dubek (vivido por Drew Tarver) namora com um jovem ator que, até quando não está nos palcos ou diante das câmeras, continua agindo como o seu personagem – o que rende uma piada ótima porque o casal não faz sexo se a transa não for coerente com as características do papel interpretado.

Atores como Daniel Day-Lewis, que exigem ser chamados pelos nomes dos personagens mesmo quando não estão filmando, são praticantes do chamado “método”. Criado no início do século 20 pelo russo Konstantin Stanislavski, e popularizado pelo ator e diretor Lee Strasberg, o método visa, de forma bastante simplificada, uma atuação mais fundamentada na realidade.

Para fazer uma cena triste, por exemplo, não basta contorcer o rosto e fingir tristeza. É preciso acessar uma memória afetiva que ajude a aflorar o sentimento da forma mais realista possível. Mesmo numa situação imaginária ou “de mentirinha”, o método de Stanislavski exige uma certa sinceridade – e vulnerabilidade – no trabalho do ator.

Embora o método também seja muito utilizado para justificar comportamentos babacas, como atores que destratam seus colegas por interpretarem inimigos, o verdadeiro propósito é formar uma conexão genuína entre o ator e o personagem, para que o público tenha o vislumbre de algo real sob o manto da falsidade que é inerente a qualquer encenação.

“Barry”, que exibiu o seu último episódio no domingo passado e acabou ofuscado pela comentada conclusão de “Succession”, é um prato cheio para os dramaturgos – e também para aqueles que, ainda que não sejam adeptos do método de Stanislavski, também vivem personagens em tempo integral.

Na série, Bill Hader – um dos melhores comediantes do “Saturday Night Live” – interpreta um veterano de guerra que foi aliciado por um amigo da família (Monroe Fuches, papel de Stephen Root) a se tornar um assassino de aluguel. Apesar de ser exímio no que faz, Barry não quer continuar matando, mas a violência é tudo o que ele conhece – até se deparar com uma escola de teatro.

A princípio, Barry é um péssimo ator, mas as aulas do picareta Gene Cousineau (Henry Winkler no melhor papel de sua carreira) e a convivência com a aspirante Sally Reed (a fenomenal Sarah Goldberg) o ajudam a canalizar toda a sua agressividade e os seus traumas para a arte – o que não agrada Fuches, que vive às custas da matança.

Barry, então, tenta levar uma vida dupla como um inofensivo estudante de teatro durante o dia e um pistoleiro impiedoso durante a noite, mas não demora muito para uma vida respingar na outra. Criada por Hader e Alec Berg, “Barry” é uma comédia ao estilo dos irmãos Coen, isto é, uma mistura de elementos cômicos e dramáticos, mas sempre num tom absurdista e até surreal.

Há, é claro, uma sátira do meio artístico – com comentários bastante atuais, inclusive, sobre as decisões irracionais dos serviços de streaming – mas a série trata, principalmente, do drama existencial de Barry que, embora não seja uma boa pessoa, acaba despertando a simpatia do espectador por conta de suas circunstâncias.

Mesmo arrancando gargalhadas ao longo dos seus 32 episódios, com uma duração enxuta de apenas 30 minutos cada, há um desapontamento que acompanha os personagens de “Barry”, um anseio por serem melhores do que de fato são. Sempre que uma verdade é exposta, as consequências são terríveis, o que faz com que eles busquem ainda mais por uma confortável ilusão.

É muito difícil reconhecer os próprios sentimentos, assumir os próprios defeitos e tornar tudo isto público para qualquer um ver e julgar – e é justamente o que torna o trabalho do ator tão fascinante. Até na ficção, é preciso coragem para encarar a realidade.

 

*SPOILERS*

 

Não sabia se deveria abordar os detalhes da trama, mas apenas para tornar o argumento do texto mais óbvio a quem já assistiu a final: Barry, é claro, quer acreditar que é uma pessoa boa e que será perdoado pelos seus pecados. Para continuar cometendo o mal, ele busca a aprovação de Deus, o que é bastante frequente em religiosos.

Ele faz quase um cosplay de uma pessoa decente, alguém que reza antes das refeições e forra as paredes de casa com palavras de inspiração em letra cursiva, mas que continua tão propenso quanto antes a resolver os problemas com uma arma. Curioso notar que Barry nunca foi tão irritante quanto nesta temporada, porque adota uma hipocrisia que conhecemos bem no Brasil.

De forma bastante parecida, NoHo Hank, que sempre se viu como um cara legal, busca higienizar a própria imagem estabelecendo um negócio legítimo, o que é apenas uma fachada elaborada que ele mesmo montou para lidar com a morte de Cristobal. Para ele, a realidade é tão dura que ele prefere morrer a admitir que é um criminoso sem escrúpulos como qualquer outro.

Os únicos sobreviventes em “Barry” são aqueles que conseguiram encarar os próprios erros. Sally, que também se culpava por não ter reagido durante o seu antigo relacionamento abusivo, diz que é uma mãe ruim e confessa ao filho que é uma fugitiva (ela também matou um homem, ainda que tenha sido em legítima defesa). 

Ao ser preso, Fuches tentou incitar medo nos outros presidiários fingindo ser alguém que não era – como “O Corvo”, no entanto, ele percebeu que deveria ter sido uma figura paterna melhor para Barry, erro que ele tenta redimir ao proteger John do tiroteio com o próprio corpo. Seu arco é, talvez, o mais interessante e inusitado de todos.

“O Corvo” deveria ser apenas um personagem ridículo, uma pose, um alívio cômico, mas Fuches nunca conseguiu admitir a realidade antes, sempre tomando decisões egoístas e afirmando que eram pelo bem de Barry. De certa forma, Fuches é que era uma persona falsa e “O Corvo” é que é real.

Quando Barry leva um tiro de Cousineau, ele exclama “oh wow” porque não achava que o professor fosse capaz disto. Cousineau também se considerava como um ator incompreendido, quando na realidade era apenas um babaca. Ele quer ser o mocinho de seu próprio filme e não irá admitir a infâmia – ainda que, ironicamente, ao matar Barry, ele perde toda a sua chance de defesa.

A tela preta depois que Barry leva um tiro na testa lembra, é claro, o final de “Sopranos”. Por alguns segundos, entrei em pânico achando que aquilo seria o fim. Mas o episódio dá um salto no tempo para vermos Sally trabalhando como professora de teatro (e recusando o convite para sair de um colega, pois ainda não está pronta para outro relacionamento).

John, já adolescente, vai até a casa de um amigo assistir o filme que foi feito sobre o caso de seu pai, chamado comicamente de “O Colecionador de Máscaras”. Ele está nervoso, pois sua mãe disse a ele que o pai era um assassino. O filme, porém, é uma versão completamente deturpada da verdade – o que não é raro em Hollywood – e coloca Barry como uma vítima de um esquema elaborado de Cousineau.

John sabe que tudo aquilo é mentira, mas sorri porque é uma versão muito mais agradável e fácil de lidar dos fatos, reiniciando um novo ciclo de ilusões. É como se a negação da realidade passasse de pai para filho. Ali, John está recebendo o seu primeiro papel, o filho de um herói injustiçado. E já sabemos o que essas ilusões podem custar.

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